Post on 21-Oct-2015
Uma sene de diálogos morda2e5 e audaciosos e a correspondência a eles assotiatfa fazem desíe forro um marco
importante para a discussão dos csiuntos da Psseologia no século X X I
Com bom humor e sagacidade, estes dois "filósofos da vida corri empcrãnea*’ oham não so para o legado da Psicoterapia
como para todos os aspectos q.e a circundam: da sexualidade a pc-Stica dos meios de comunicação ao meio amòet^e
e a irida na cidade.
James ftllman psfcobgo gngúaao retomado e controvertido une-se a Michaeí Ventura, jomaftsta e escritor, para
estraçalhar muitas das opircces correffíes sobre nossas vfàas, a psique e a sociedade.
Se vxè jã passou por uma terapa ou pretende fazê-lo. se e teraperjta ou pretende sê-lo, se está interessado rios principais problemas que afligem a sociedade moderna,
não deixe de ler este livro,
Vocè não sera mais a mesma pessoa, depois ce conhecer as refieaóes desses dois fcriíhantes e indomáveis intelectuais
que correm riscos, quebram regras e aíraiessam snats vermelhos p-ara chegar a1è o mais profundo
de nossos seres e de nossas crencas.
PRÉFRC IO
A gênese deste livro pode ser descrita através de uma série de porquês: porque o trabalho do psicólogo James Hillman (especialmente seu livro O sonho e o mundo subterrâneo) influenciou, instigou e rondou meus pensamentos muito antes de nossos caminhos se cruzarem em várias conferências e palestras; porque, um dia, eu falava a respeito de Hillman com Kit Rachils, editor do Los Angeles Weekly, Kit ficou tão interessado que me sugeriu fazer uma entrevista de capa com Jim; porque essa entrevista (que, ampliada, é agora a primeira parte deste livro) foi impetuosa e exaustivamente discutida enquanto íamos de um ponto ao outro da cidade; e porque, no ímpeto dessa reação, nós decidimos fazer um livro.
Queríamos um livro informal, arrebatador e até engraçado sobre a terapia, um livro que arriscasse, rompesse regras, cruzasse sinais vermelhos. Para tanto, decidimos nos ater às conversas, bate-papos descontraídos (portanto, irreverentes) e à prosa coloquial das cartas. Por quê? Porque a psicoterapia quer e exige ser questionada, até atacada, em sua forma favorita: sóbria, contida, bem-comportada — em outras palavras, como qualquer instituição estabelecida, a indústria da psicoterapia quer ser abordada de modo que implique a aceitação de seus códigos básicos de conduta e, em decorrência, seus objetivos básicos. Mas se fizermos isso, em vez de questionarmos esses códigos e objetivos, estaremos aceitando-os mais do que se imagina e reforçando-os ao jogar com suas regras.
Não é assim que se cria uma ruptura — ruptura na qual, como sugere James Hillman, o consultório venha a tornar-se uma célula revolucionária, um meio de modificar não só a pessoa em si mas o próprio mundo. Então, escolhemos outro caminho e fizemos o livro que você tem nas mãos.
Michael Ventura Los Angeles, 1991
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Dois homens caminham pelas paliçadas do Pacífico, numa tarde em Santa Mônica. Vão na direção do que os californianos cha
mam de norte porque, no mapa, segue a linha da costa “para cima”; na realidade, a costa se curva abruptamente nesse local e eles estão indo para o oeste. É bom mencionar esse detalhe apenas porque é do tipo que interessa a esses dois homens e, se lhes atrair a atenção, irão falar a respeito, fazer digressões e até lhe dar grande importância — em parte por diversão e, em parte, porque é assim que eles são.
Os dois iniciaram o passeio no cais de Santa Mônica, local de aparência festiva, onde pessoas influentes cruzam-se com os sem-teto, os sul-americanos do leste de Los Angeles e dos novos guetos da América Central, no centro-sul; os asiáticos de Chinatown, Koreatown e os enclaves japoneses; os brancos pálidos de Culver City e do norte de Hollywood; os brancos bronzeados e esbeltos da zona oeste de Los Angeles; velhos de todas as procedências e todos os sotaques e turistas de toda parte do mundo. Os pobres tentam pescar para comer, apesar do aviso escrito em inglês e espanhol alertando para o perigo de ingerir o que possam ter pescado. A praia está sempre interditada devido aos dejetos despejados pelos esgotos. Mas o oceano não mostra seu lixo; parece adorável, lindo como sempre. A orla é de 10 a 30 graus mais fresca que poucos quilômetros para o interior. Por isso, todos vão para lá.
Eles subiram até o rochedo Pacific Palisades, passaram pelos outeiros de onde se avistam a rodovia costeira e o mar, e no ponto mais afastado do parque, onde as colinas são mais altas e não há tanta gente, sentam-se num banco.
Os homens são James Hillman e Michael Ventura. Hillman tem sessenta e poucos anos, é alto e magro. Embora seja de Atlantic City e judeu por nascimento, porta-se como um velho habitante da Nova Inglaterra, com aquele senso ianque de autoridade tolerante mas sensata — de certa form a suavizada por seu penetrante interesse por tudo e por todos que estejam por perto. Ventura tem quarenta e poucos anos, é mais baixo, mais moreno e mais relaxado que Hillman. Está usando um tipo de chapéu que se vê em filmes dos anos 40 e botas de cowboy já um tanto gastas; ele dá a impressão de estar buscando o equilíbrio entre tantas in
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congruências. Hillman épsicólogo, autor e conferencista; Ventura escreve para jornais e é roteirista de cinema.
Ventura tem um pequeno gravador, que durante seus encontros com Hillman está sempre ligado, estejam eles andando ou no carro. A conversa tem um tema: a psicoterapia. E tem algo parecido como uma forma: um força o outro não a ser razoável, mas a ir mais além em seus pensamentos. Essas conversas têm uma pretensão: elas e, posteriormente, as cartas trocadas entre ambos irão se tornar um livro, um livro informal, mas (esperam) veementemente polêmico, que mexa um pouco com a psicoterapia. Isso porque ambos têm a convicção de que a psicoterapia necessita, e muito, ser empurrada para além de suas idéias já estabelecidas; precisa ganhar novo estímulo, antes que seja totalmente cooptada como mais um artifício para encaixar as pessoas numa moralidade forçada e falsa.
Eles estão ali sentados, Ventura põe o gravador no meio dos dois e começa a falar do que, na época, era seu tema preferido.
☆ ☆
JRM6S HillMflN: Já se vão cem anos de análise, as pessoas estão cada vez mais sensíveis e o mundo, cada vez pior. Talvez seja a hora de encarar isso de frente. Ainda localizamos a psique dentro da pele. Você entra para localizá-la, examina os seus sentimentos, os seus sonhos, que só a você pertencem. Ou suas inter- relações, o intrapsíquico, entre sua psique e a minha. Estende-se um pouco aos sistemas familiares e ao ambiente de trabalho — mas a psique, a alma, ainda permanece só dentro das pessoas e entre elas. Constantemente trabalhamos nossas relações, nossos sentimentos e nossas reflexões, mas observe quanta coisa fica de fora.
Hillman fa z um gesto amplo que inclui o petroleiro no horizonte, as pixações de uma gangue numa placa do parque e uma mendiga gorda, com tornozelos inchados e pele rachada, dormindo na grama a poucos metros de onde estão.
O que sobra é um mundo deteriorado.Por que a terapia não percebe isso? Porque a psicoterapia tra
balha somente “ dentro” da alma. Quando ela remove a alma do mundo e não reconhece que está também inserida nele, não pode mais lazer seu trabalho. As casas estão doentes, as instituições estão
doentes, o sistema bancário está doente, as escolas, as ruas... a doença está aqui fora.
A alma, sabe, é sempre redescoberta pela patologia. No século XIX não se falava em psique até aparecer Freud e descobrir a psicopatologia. Agora já se diz que nossos móveis são feitos de algo que nos está envenenando, que os fornos de microondas liberam raios perigosos. O mundo tornou-se tóxico.
Os dois olham o sol refletido no mar eparecem pensar a mesma coisa.
MICHR6L V€NTURR: O mar está doente. Não podemos comer os peixes.
HIllMRN: O mundo está cheio de sintomas. Não estaríamos começando a reconhecer aquilo que se costumava chamar de animismo?
O mundo está vivo — meu Deus! E isso provoca alguns efeitos em nós. “ Tenho que me livrar dessas latas de aerosol.” “ Tenho que me livrar desses móveis feitos de aldeído fórmico.” “ Tenho que ficar atento a isto, aquilo e aquilo outro.” Há muita patologia no mundo e por isso estamos começando a tratá-lo com mais respeito.
V6NTURR:É como se, por termos negado o espírito das coisas, o espírito, ofendido, voltasse para se vingar. Como se, por negarmos a alma das coisas, por dizermos como Descartes, “ Vo- ccs não têm alma” , elas se voltassem contra nós e dissessem: “ Olhe aqui minha alma, imbecil!”
HILLMRN: “ Veja só o que vou fazer, Homem! Você vai agüentar esta lâmpada horrorosa em seu escritório e sofrer todas as vezes que olhar para ela. Vou produzir esta luz fluorescente que, aos poucos, deixará você maluco. E então você vai procurar um psicoterapeuta para trabalhar os seus relacionamentos, mas não saberá que fui eu que o peguei. Com aquele tubo fluorescente em cima da sua cabeça o dia todo, batendo direto no seu crânio, como um agente da KGB apontando um holofote em sua direção, em cima de você — grosseiro, cruel, sem sombras.”
V6NTURR: Apesar de sentirmos tudo o que fazemos e dizemos, e todo mundo sente, caímos em duas armadilhas: de um lado está o “ progresso” , um valor que temos entranhado — se você acha que está fora disso, dê um passeio de carro pelo México e verifique que nem os americanos pobres quereriam viver como a maioria daquela gente (para os mexicanos, os americanos pobres têm vida de rico, por isso eles continuam chegando); de outro lado,
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sabemos que as coisas à nossa volta estão cada vez mais prejudiciais, mas não temos idéia do que fazer. Nosso senso político atrofiou, virou esse disparate que se vê nas eleições presidenciais.
HIllMflN: O senso político decaiu sensivelmente. Não há mais sensibilidade para os problemas reais. Por que as pessoas inteligentes — ao menos da classe média branca — são tão passivas hoje em dia? Por quê? Porque os mais sensíveis e inteligentes estão em terapia! Aqui nos Estados Unidos se faz terapia há trinta, quarenta anos, e nesse tempo houve uma tremenda decadência política no país.
V€NTURfl: Por que acha que isso acontece?HILLMRN: Toda vez que temos que lidar com a agressividade
em nossas rodovias, o tormento que são nossos escritórios, nossa iluminação, os trastes que são nossos móveis, o crime nas ruas, seja o que for, sempre que tentamos lidar com tudo isso procurando a terapia com a raiva e o medo que sentimos, estamos privando o mundo político de alguma coisa. E a terapia, na sua loucura, ao enfatizar a alma interior e ignorá-la do lado de fora, sustenta a decadência do mundo real. Contudo, a terapia segue acreditando cegamente que está curando o mundo e tornando as pessoas melhores. Há muitos anos diz-se que “ se todas as pessoas fizessem terapia teríamos casas melhores, pessoas melhores, mais consciência” . Não é bem assim.
V€NTURfl: Não tenho certeza se isso aconteceu por acaso mas, decididamente, é um padrão. Nosso conhecimento interior tornou- se mais sutil, ao passo que a habilidade para lidar com o mundo que nos rodeia deteriorou', talvez essa não seja uma palavra suficientemente forte — desintegrou é melhor.
HIllMflN: Hoje em dia, a moda em psicoterapia é a “ criança interior” . É a nova terapia — você retorna à infância. Mas se você está olhando para trás, não está vendo em volta. Essa viagem para trás envolve o que Jung chama de “ arquétipo da criança” . Ora, por natureza, o arquétipo da criança é apolítico e impotente — não tem conexão com o mundo político. Então o adulto diz: “ O que posso fazer pelo mundo, se ele é maior do que eu?” Esse é o arquétipo da criança falando. “ Tudo o que posso fazer é mergulhar dentro de mim, trabalhar meu crescimento, meu desenvolvimento, encontrar bons parceiros e grupos de apoio.” Isso é um desastre para o nosso mundo político, a nossa democracia. A democracia depende de cidadãos intensamente ativos, não de crianças.
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Ao enfatizar o arquétipo da criança, ao transformar nossas horas terapêuticas em rituais de evocação e reconstrução da infância, estamos bloqueando nossa vida política. Vinte ou trinta anos de terapia afastaram de nossa sociedade as pessoas mais sensíveis e inteligentes, bem como algumas das mais influentes, para cultuar a criança. Isso está acontecendo de maneira insidiosa em todas as terapias, por todo o país. Portanto, é natural que nossa política seja um descalabro e ninguém vote; estamos perdendo o poder através da terapia.
V6NTURR: A premissa com a qual as pessoas estão trabalhando é que o crescimento interior se traduz em poder no mundo, e muitas não percebem que vão para a terapia pressupondo isso.
HILLMRN: Se o crescimento pessoal levasse ao mundo, nossa situação política hoje seria diferente, não seria? Considerando-se a quantidade de pessoas especialmente inteligentes que fizeram terapia? O que se aprende em terapia é, principalmente, como lidar com os sentimentos, como recordar de verdade, como deixar que a fantasia aconteça, como encontrar palavras para coisas invisíveis, encará-las e ir fundo nelas...
V6NTURR: Boas coisas para se aprender...HILLMRN: Sim, mas você não aprende a ter habilidade políti
ca e nem fica sabendo como o mundo funciona. O crescimento pessoal não conduz automaticamente a resultados políticos. Olhe a Europa oriental e a União Soviética. A psicoanálise foi banida de lá durante muito tempo e as mudanças políticas irromperam surpreendendo a todos. Essas mudanças não resultaram de terapias e sim de revoluções.
V6NTURR: Então você faz uma espécie de oposição entre poder, o poder político ou a inteligência política, e a inteligência terapêutica. Muitos dos que são terapeuticamente sensíveis são politicamente silenciosos e insignificantes; e se você observar as pessoas que excercem grande poder em qualquer esfera da vida, verá que em geral são aquelas cujo crescimento interior foi intensamente sustado.
HILLMRN: Você acha que as pessoas fazem terapia para crescer?V6NTURR: Por acaso a palavra crescimento não ocupa gran
de parte do projeto terapêutico? Todo mundo a usa, tanto terapeutas quanto pacientes.
HILLMRN: Mas a própria palavra crescimento é apropriada para as crianças. Depois de certa idade não se cresce mais. Os dentes não crescem, os músculos não crescem. Se você começa a crescer depois dessa idade, está com câncer.
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V6NTURR: Ah, Jim, por que não posso crescer dentro de mim durante toda a vida?
HIllMflN: Crescer o quê? Milho? Tomates? Novos arquétipos? O que estou fazendo crescer, o que você faz crescer? A resposta-padrão da terapia é: fazer crescer a si mesmo.
V€NTURfl: E o filósofo Kierkegaard voltaria para dizer: “ A natureza mais profunda não muda, transforma-se cada vez mais nela própria.”
HIllMflN: Jung diz que individuação é ser cada vez mais si mesmo.
VÉNTURfl:E ser cada vez mais si mesmo implica coisas desagradáveis. Jung também afirma que nada é mais terrível que conhecer a si mesmo.
HIllMflN: E ser cada vez mais o que se é — a real experiência disso é um encolhimento, quase sempre no sentido de um resse- camento, de perda de gorduras, de perda das ilusões.
V6NTURA: Isso não parece nada agradável. Por que alguém desejaria isso?
HIllMflN: Porque mudar é uma coisa linda. É claro que não é o que diz o consumismo, mas mudar é bom. É um grande estímulo.
V6NTURA: Mudar o quê?HIllMflN: Mudar as falsas peles, perder a matéria incrustada
que se acumulou. Soltar a casca seca. Essa é uma das grandes mudanças. Coisas que não funcionam mais, que não sustentam mais, que não o mantêm vivo. Um conjunto de idéias que se tem há muito tempo. Pessoas das quais, na verdade, você não gosta, pensamentos viciados, hábitos sexuais. Estes últimos são pontos muito importantes: se aos 40 anos a pessoa faz sexo como fazia aos 18, estará perdendo algo; e se aos 60 fizer amor como fazia aos 40, também estará perdendo. Tudo muda. A imaginação muda.
Dizendo de outro modo, crescimento é sempre perda.Sempre que você cresce, perde alguma coisa. Perde aquilo a
que se agarrava para se preservar. Perde hábitos confortáveis, perde o senso de familiaridade. Isso é importante: começar a se mover para o desconhecido.
Sabe, no mundo orgânico, tudo o que cresce move-se constantemente para movimentos e coisas desconhecidas. Veja os pássaros: eles crescem, caem dos ninhos, não conseguem voar direito. O crescimento é todo desajeitado. Veja um garoto de 14 anos tropeçando nos próprios pés.
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V€NTURR: A fantasia do crescimento encontrada na terapia e também nas idéias da Nova Era não inclui essa falta de jeito, que pode ser terrível e durar anos. Quando vemos pessoas que estão passando por essa fase, não dizemos que estão crescendo e sim que estão fora disso. E nessas fases é óbvio que ninguém se considera a pessoa mais poderosa do mundo.
HILLMRN: A fantasia do crescimento é uma fantasia de expansão romântica e harmoniosa, de desenvolvimento e criação perpétuos, da pessoa cada vez maior e integrando, juntando tudo isso.
V€NTURR: E se não realiza essa fantasia, vê-se como um fracassado.
HILLMRN: Exatamente.V6NTURR: Então, essa idéia de crescimento pode nos colocar
num estado de fracasso constante!HILLMRN: “ Eu já deveria ter superado isso; não estou intei
ro; não consigo juntar as partes; se eu estivesse realmente crescendo, há muito teria me livrado dessa minha confusão.”
V0JTURR: Isso nos predispõe ao fracasso. É muito engenhoso!HILLMRN: É uma idealização que nos predispõe ao fracasso.V6NTURR: Isso porque a gente vive se comparando à fantasia
de onde deveríamos estar, numa escala ideal de crescimento.HILLMRN: E faz ainda pior. Não só nos predispõe ao fracas
so, como à anomalia: “ sou peculiar” . Faz isso sem respeitar a uniformidade, a consistência da pessoa. A uniformidade é uma parte muito importante da vida — ser consistente e constante em certas áreas que não mudam, não se desenvolvem.
A pessoa faz terapia há seis anos e volta para casa num feriado de Ação de Graças, abre a porta, vê toda a família reunida e imediatamente está de volta onde sempre esteve. Sente o que sempre sentiu! Ou então, está divorciada há alguns anos, nunca se encontrou com o ex-companheiro, embora às vezes se falem por telefone, mas quando entram na mesma sala em segundos surge a mesma chama, a chama que os arrebatou tempos atrás.
Algumas coisas não mudam nunca. São como rochas. Existem rochas na psique. Existem cristais, minério de ferro, existe um nível metálico em que certas coisas não mudam.
V6NTURR: E se esses elementos mudassem, se pudessem mudar, seriamos tão fluidos que jamais seriamos nós mesmos e nem poderíamos ser. Seriamos perigosamente fluidos. Onde estaria isso que é você, se a psique não dependesse de algumas coisas que não mudam? E a dependência da imutabilidade está muito abaixo do nível de controle e consentimento do ego.
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HIllMRN: O aspecto imutável. Se retrocedêssemos à filosofia pré-aristotélica, conheceríamos o que era chamado de Ser. “ O Ser real não muda.” Era uma fantasia. Outro diriam: “ O Ser real está sempre mudando.” Não quero saber qual dos dois está certo, e sim argumentar que ambas as afirmações são categorias fundamentais da vida, do ser. Você pode ver sua vida com olhos da uniformidade e dizer: “ Meu Deus, na verdade nada mudou.” Ou ver a vida com outros olhos e constatar: “ Que diferença! Há dois, há nove anos, eu era assim e assado, mas agora tudo isso passou, mudou completamente!”
Esse é um dos grandes enigmas dos quais Lao Tsé falava: o mutável e o imutável. O trabalho da terapia não é tentar fazer com que o imutável mude, mas procurar separar um do outro. Se você trabalha o que é chamado de neurose de caráter, se aceita alguém que é muito emotivo de certa maneira se tenta fazer com que a pessoa seja o que não é, o que estará fazendo? Porque existem partes da psique que são imutáveis.
VÉNTURfl: E isso deve ser respeitado.HILLMRN: Precisa ser respeitado, porque a psique sabe me
lhor que a gente por que resiste à mudança. Cada complexo, cada figura psíquica em nossos sonhos sabe mais de si mesmo que nós, sabe o que faz e por que está ali. Por isso a gente pode muito bem respeitá-lo.
V6NTURA:E se o terapeuta não respeita isso, não está respeitando a pessoa.
HILLMRN: O que nada tem a ver com querer mudar. É como na anedota: “ Quantos psiquiatras são necessários para mudar uma lâmpada?” “ Só um, mas a lâmpada precisa realmente querer ser mudada.” Mesmo que a lâmpada queira ser mudada, ainda assim não se pode mudar o que é imutável.
V€NTURR: A fantasia do crescimento, a fantasia da pessoa sempre em expansão, sempre em desenvolvimento — que é uma fantasia muito forte atualmente, em especial entre pessoas instruídas e que consomem livros de auto-ajuda —, jamais considera o imutável, não cria uma dialética entre o mutável e o imutável. Assim (voltando à relação entre terapia e política), essa fantasia alimentada por muitos tipos de terapia só pode, a despeito dela mesma e a longo prazo, fazer com que as pessoas sintam-se fracassadas. O que, por sua vez, só faz aumentar a sensação geral de impotência.
É um bom círculo vicioso.
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HILLMRN: Há outra coisa que a terapia faz e que considero /iciosa. Ela internaliza as emoções.
Hillman olha para a rodovia cheia de carros, que andam em alta velocidade, com o pára-choque colado ao carro da frente.
Fico indignado quando vou ao consultório de meu analista pela rodovia. Os malditos caminhões quase me fazem sair da pista. Fico apavorado; estou no meu carrinho, chego tremendo ao consultório do meu terapeuta, e ele me diz: “ Vamos falar sobre isso.”
E então começamos a conversar. Descobrimos que meu pai era um maldito brutamontes e que os caminhões me fazem lembrar dele. Ou descobrimos que sempre me senti frágil e vulnerável, todo mundo era maior que eu, com pênis maior, e que o carro em que eu estava é um exemplo típico de minha sensibilidade, da minha fragilidade e vulnerabilidade. Ou discutimos meu instinto de poder: na verdade, quero ser motorista de caminhão. Convertemos meu medo em ansiedade, um estado interior. Transformamos o presente em passado, numa discussão sobre meu pai e minha infância. E convertemos minha indignação — provocada pela poluição, pelo caos ou por qualquer coisa que me deixe indignado — em raiva e hostilidade. Novamente, uma condição interior, ao passo que tudo começou com uma indignação, uma emoção. As emoções são principalmente sociais. A palavra vem do latim ex movere, mover para fora. As emoções conectam com o mundo. A terapia introverte as emoções, chama-as de medo, ansiedade. Você as pega de volta, trabalha-as interiormente. Não trabalha psicologicamente o que a indignação lhe diz sobre o trânsito, os caminhões, os morangos de março da Flórida em Vermont, a queima de petróleo, a política energética, o lixo nuclear, aquela mendiga na frente com feridas nos pés — nada disso.
V6NTURR: Você está dizendo que não precisamos da intros- pecção? Logo um sujeito introspectivo como você!?
HILLMRN: Vamos grifar isto para que não passe em branco: Não estou negando a necessidade de interiorização — mas acho que precisamos saber o que estamos fazendo quando interiorizamos. Entramos dentro de nós com a mesma visão cartesiana de que o mundo lá fora é matéria morta e o mundo interior está vivo.
V6NTURR: Um terapeuta disse que minha tristeza diante de um mendigo da minha idade é, na verdade, um sentimento de pena por mim mesmo.
HILLMRN: E lidar com ele significa ir para casa e elaborá-lo através da reflexão. É o que significa hoje lidar com os sentimentos. E ao fazê-lo, você terá abandonado o mendigo na rua.
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V6NTURR: Em parte, é também uma forma de amputar o que se chama de Eros, a parte do meu coração que busca tocar o outro. Teoricamente, é algo que a terapia tenta liberar, mas se alguém na rua desperta em mim um sentimento, espera-se que eu lide com com ele como se nada tivesse a ver com a outra pessoa.
HILLMRN: Será que o que mais acreditamos — que a terapia é a única coisa boa neste mundo de hipocrisias — não é verdade? Será que a psicologia e o trabalho consigo mesmo não fariam parte da doença e não da cura? Acho que a terapia cometeu um erro filosófico ao afirmar que a cognição precede a conotação, que o conhecimento antecede o fazer ou a ação. Não acredito que seja assim. Para mim, a reflexão é sempre posterior ao fato.
Os dois pensam um pouco sobre isso.HILLMRN: O que a terapia promove são os relacionamentos,
embora o trabalho seja igualmente importante. Você acha que vai morrer se não tiver um bom relacionamento. Sente que, se não tiver uma relação longa e profunda, vai ficar aleijado, que é um louco, um neurótico, ou qualquer coisa. Tem crises intensas de ansiedade e solidão. Mas essa sensação não se deve unicamente aos maus relacionamentos; surge também porque não se pertence a nenhuma comunidade política que faça sentido, que seja significativa. A terapia promove a questão dos relacionamentos, mas o que a torna tão intensa é não termos: a) um trabalho que nos satisfaça; e b), talvez até mais importante, não termos uma comunidade política que nos satisfaça.
Não se pode mascarar a falta de paixão e objetivo nas atividades diárias intensificando as relações pessoais. Acho que falamos tanto em crescimento interior e desenvolvimento porque estamos presos a interesses triviais e particulares em tudo o que fazemos.
V6NTURR: Em um mundo onde a maior parte das pessoas faz trabalhos que não só são insatisfatórios, como também, com suas pressões, são profundamente desestabilizadores, um mundo onde nada é mais raro que algo que faça lembrar uma comunidade, jogamos todas as nossas necessidades num relacionamento, ou esperamos que a família as satisfaça. E então nos espantamos porque nossos relacionamentos e nossa família se quebram sob tanto peso.
HILLMRN: É extraordinário observar a psicoterapia, que surgiu com aqueles excêntricos de Viena e Zurique e dos asilos de loucos da Europa, falando hoje a mesma língua da direita republi
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cana sobre as virtudes da família. O governo e a terapia estão em concordância simbiótica e feliz em relação à propaganda que em tantos anos de Ronald Reagan se fez da família. Mas sabemos que, sociologicamente, a família não existe mais. As estatísticas são assustadoras. E os padrões atuais da vida em família, como as pessoas sentem-se e agem nas famílias que ainda resistem, mudaram radicalmente. Não se vive mais em família do mesmo modo; não se quer viver em família. Há famílias desfeitas, meias famílias, famílias múltiplas, famílias com todos os tipos de loucura. A idéia de família só existe para os pacientes burgueses que servem à psicoterapia. Atualmente, a família é, de fato e em grande parte, uma fantasia dos terapeutas.
Por que precisamos dessa família estilo Norman Rockwell, esse ideal de faz-de-conta que hoje é tão exuberante na política quanto na terapia? Não vejo o que isso possa fazer pelo corpo político, mas sei o que está fazendo pela terapia. Para esta, mantém intacto o ideal de que todo mundo pode mostrar quanto é disfuncional. Mantém o comércio funcionando; essa seria a opinião de Ivan Illich.* Nós precisamos de pacientes.
V6NTURR: Mesmo o ideal de Norman Rockwell da família feliz e auto-suficiente é uma distorção do que as famílias foram por milhares, provavelmente dezenas de milhares de anos. Em todo esse tempo nenhuma família foi auto-suficiente. Era uma unidade de trabalho que fazia parte de uma unidade de trabalho mais ampla, a comunidade — tribo ou aldeia. Estas sim eram auto-suficientes, não as famílias. Não só porque todos trabalhavam juntos, mas porque também divertiam-se e rezavam juntos, de modo que o peso dos relacionamentos, e a importância deles, não se restringiam à família e muito menos a uma relação romântica, mas distribuíam-se por toda a comunidade. Até a Revolução Industrial, a família sempre existiu nesse contexto.
HILLMRN: E a família também existe no contexto dos ancestrais. Nossos ossos não estão aqui nesta terra. Hoje, as famílias não carregam mais seus ancestrais consigo. Em primeiro lugar, nós, americanos, deixamos nosso país de origem e viemos para cá, abandonando nossos ancestrais. E em segundo, passamos a ser pessoas que só têm o primeiro nome. Acabei de participar de
* Illich é um pensador radical maravilhoso! Agrada-me muito sua idéia de que a terapia é uma indústria que precisa de novas fontes de minério para explorar. Os neuróticos comuns não preenchem suas práticas, por isso a terapia necessila encontrar novas “ minas” — os casos geriátricos, grandes empresas, crianças pequenas, famílias inteiras.
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um congresso de psicoterapeutas em que havia mais de setecentas pessoas, todas usando um crachá com o primeiro nome. Este vinha escrito em cima, em letra maiúscula, e o sobrenome embaixo, em letra minúscula.
V€NTURfí: É no sobrenome que estão os ancestrais, o país, o resíduo do passado.
HIllMflN: Tudo está no sobrenome. Primeiro, o nome segue a moda, cede à pressão social. Numa geração, vê-se uma porção de Tracy e Kimberly, Max e Sam, noutra, Edite e Dora, Michael e David. Mantemos nossos ancestrais em nós, em nossa psique, quando usamos o sobrenome. Conservamos irmãos e irmãs, que têm o mesmo sobrenome. Quando sou chamado de Jim, sou meramente Jim, sem características próprias.
Ter só o primeiro nome significa ser servo, escravo, uma pessoa oprimida. Ao longo da história os escravos foram chamados pelo primeiro nome. Hoje, toda a nação só tem o primeiro nome. Naquele congresso, os únicos que tinham sobrenome eram os con- ferencistas — 25 pessoas que as outras setecentas pagaram para ouvir. Nosso sobrenome estava escrito em letras grandes e o primeiro nome em letras pequenas. Indaguei a respeito e disseram- me: “ Para que não sejam chamados de James, Jim, Bob ou Bill, mas que se dirijam ao senhor como Mr. Hillman.”
A terapia não é diferente; ela também se curva à convenção. Os primeiros casos de análise, de Freud e Jung, só têm o primeiro nome das pessoas — Anna, Babette. Supõe-se que seja para demonstrar intimidade e igualdade...
V6NTURA: — e anonimato.HIllMflN: Na verdade, o que isso faz é despir a pessoa de sua
dignidade, das raízes de sua individualidade, porque esconde os ancestrais, que também estão no consultório. Pior, essa maneira de falar concentra toda a atenção em mim, Jim, meu pequeno eu, ignorando toda a complexidade de minha bagagem social, de minhas raízes raciais. Deveríamos ter três ou quatro sobrenomes, todos hifenados, como na Suíça ou na Espanha, inclusive o sobrenome da família de minha mãe, o de minha mulher, de minha ex-mulher, e assim por diante. Ninguém é simplesmente Jim.
V6NTURA: Nesse sentido, sou muito mais americano; gosto de ter perdido parte desses nomes. Mas acho que deveríamos usar ao menos o sobrenome de pai e mãe, sem hífen.
Sabe, por falar em escravos, patrões e proprietários são sempre chamados de senhor, mas têm liberdade para se dirigir aos em
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pregados pelo primeiro nome. E entre trabalhadores de mesmo status, ou supostamente igual, não é incomum chamar-se um homem pelo sobrenome, enquanto as mulheres quase sempre são chamadas pelo nome, a menos que estejam fazendo um serviço pesado. Dessa forma, quando usamos o nome, também estamos lidando com o poder. Estamos reforçando certos tipos de autoridade e de desigualdade.
Voltando ao que você disse: pregar a família ideal é um modo de nos considerarmos disfuncionais, porque esse ideal faz com que tudo o que esteja fora dele seja, por definição, não ideal, ou seja, disfuncional. Sem esse ideal somos apenas o que somos.
HILLMRN: O ideal de crescimento nos faz sentir estáticos; a família ideal nos faz achar que estamos loucos.
V€NTURR: Temos essas idealizações que nos fazem sentir menos doidos, mesmo que não observemos nenhuma delas em nossa vida. Acho que sou louco porque não consigo manter uma mesma relação a vida inteira, mas olho em volta e não há ninguém que consiga fazer isso.
HILLMRN: Eu conheço pessoas que estão casadas há cinqüenta anos ou mais.
V6NTURR: Eu também, só que um deles é alcoólatra e o outro vive passeando por aí, viajando muito; não fazem amor há anos (literalmente) e um deles é homossexual enrustido. Não é um exemplo abstrato, são pessoas que conheço. As bodas de ouro seriam muito diferentes se soubéssemos o que as pessoas estão escondendo. Mesmo assim, continuamos nos medindo por esses ideais.
HILLMRN: E a psicologia também idealiza a família de outro modo, talvez ainda mais destrutivo: ela assume que a personalidade e o comportamento são determinados pelas relações familiares na infância.
V€NTURR: Bem, as pessoas crescem de qualquer jeito, de algum modo, e como isso acontece determina a vida delas, não é?
Segue-se um longo e desconfortável silêncio. O petroleiro desapareceu no horizonte, mas o tráfego ainda é intenso na estrada. Um pequeno avião sobrevoa o pier de Santa Monica, levando a reboque uma faixa amarela com votos de feliz aniversário para alguém chamado Eliza. Mais abaixo, na costa, os 747 levantam vôo, um após o outro, do aeroporto de Los Angeles, e fazem uma curva inclinada sobre o mar. A mendiga acordou (seus olhos estão abertos), mas não se mexe.
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Hillman volta a falar.HILLMRN: O principal conteúdo da psicologia americana é a
psicologia do desenvolvimento: tudo o que acontece a você no começo da vida é a causa do que vai acontecer mais tarde. Essa é a teoria básica: nossa história é nossa causalidade. Nem sequer separamos história como ficção da história como causa. Portanto, é preciso voltar à infância para obter-se uma explicação de por que se é como é. Se, na nossa cultura, as pessoas perdem a cabeça, ficam perturbadas, ou sentem-se encurraladas, no mundo psi- coterapêutico elas retornam às mães, aos pais e à infância.
Nenhuma outra cultura faz isso. Se você perde a cabeça em outra cultura, fica muito perturbado, sente-se impotente, ou ano- réxico, vai logo pensar no que comeu, se está sofrendo algum feitiço, se desrespeitou um tabu; pensa no que fez de errado, quando foi que esqueceu de reverenciar os deuses, se não participou da dança, ou se desobedeceu a um costume tribal. Qualquer coisa. Poderia ser um milhão delas — plantas, água, maldições, demônios, deuses, perder o contacto com o “ grande espírito” . Mas nunca, jamais, seria o que aconteceu entre você, sua mãe e seu pai há quarenta anos. Somente nossa cultura usa esse modelo, esse mito.
V6NTURR: (surpreso e confuso): Bem, por que isso não pode ser verdade? Porque as pessoas diriam... está bem, eu digo: “ Por isso sou como sou.”
HILLMRN: Porque esse é o mito em que você acredita.V6NTURR: E que outro mito poderia haver? Não é um mito,
é o que aconteceu!HILLMRN: “ Não é um mito, é o que aconteceu.” No momen
to em que dizemos “ é o que aconteceu” estamos declarando que “ esse é o mito que não vejo mais como mito. É o mito que não consigo penetrar” . “ Não é um mito, é o que aconteceu” sugere que os mitos são coisas nas quais não acreditamos. O mito que acreditamos, em meio ao qual nos encontramos, denominamos “ fato” , “ realidade” , “ ciência” .
Mas digamos que alguém encare isso de modo diferente. Digamos que o que importa é que você tem uma semente, é uma determinada pessoa, e que essa pessoa começa a aparecer muito cedo para aí ficar por toda a vida. Winston Churchill, por exemplo, nos seus tempos de escola, tinha muita dificuldade com a linguagem e não falava bem. Foi colocado no que se chama de “ classe especial” . Tinha problemas de escrita, de fala e de ortografia. É
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claro que tinha! Esse garotinho seria o ganhador do Prêmio No- bel de Literatura e salvaria o mundo ocidental com seus discursos. Certamente tinha problemas de fala, certamente não conseguia expressar-se com facilidade aos 11 ou 14 anos de idade — era pesado demais para ele.
Veja também Manolete, o toureiro, que aos 9 anos era um menino magrinho e medroso que seguia a mãe pela casa. E foi o maior toureiro de todos os tempos. A psicologia diria: “ Sim, ele foi um toureiro tão bom porque era um menino franzino que teve que compensar sendo um herói.” Essa seria uma psicologia adleriana — toma-se a deficiência, a inferioridade, e converte-se em superioridade.
V6NTURA: Essa noção infiltrou-se por toda parte — tanto o movimento de emancipação das mulheres quanto o dos homens dependem dela mais do que admitem.
HILLMAN: Mas levemos isso para outra direção e digamos que a vida da pessoa seja lida de frente para trás. Nesse caso, Manolete seria um grande toureiro, e ele já sabia disso. Lá dentro de sua psique ele sabia, aos 9 anos de idade, que seu destino seria enfrentar touros enormes com grandes chifres. Certamente fazia muito bem de ficar grudado à mãe! Por não poder suportar tanta capacidade — seu destino já estava traçado e não podia ser mudado. Era grande demais. Não que Manolete fosse incapaz, mas tinha um destino por demais grandioso.
Agora, digamos que é assim que observamos nossos pacientes. Digamos que meu filho comporte-se estranhamente, gagueje ou seja medroso, e em vez de encarar isso como problemas de desenvolvimento, eu vejo como algo gue é grande dentro dele, um destino que ele não pode mudar. É um destino maior que ele e sua psique sabe disso. É uma maneira diferente de ler a própria vida. Em vez de compreender a vida atual como resultado de fatos desagradáveis na infância, lê-se a infância como a vida em miniatura, um camafeu da vida, reconhecendo que não se saberá o que é a vida até chegar aos 80 anos, quando a pessoa já estará muito velha para colocá-la em foco, ou mesmo para preocupar- se com isso!
V6NTURA: Que loucura! Como uma criança pode saber o que vai acontecer?
HILLMAN: Nossas crianças não podem saber o que vai acontecer, porque não se imagina que elas sejam crianças platônicas, que vieram ao mundo já sabendo tudo. “ A alma sabe quem somos
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desde o começo” , diz uma das teorias da infância. Estamos presos em nossa própria teoria especial da infância. De acordo com essa teoria, um bebê vem ao mundo com alguns mecanismos inatos, mas não com um destino.
V6NTURR: O que você está dizendo me faz lembrar uma coisa. Existe um livro de fotografias, intitulado A s they were, de pessoas famosas quando eram crianças, e é surpreendente que aos 4, 6 ou 9 nove anos, Abbie Hoffman, J. Edgar Hoover, Franz Kafka, Joan Baez e Adolf Hitler se parecessem exatamente com... bem, com o destino que tiveram.
HILLMRN: E por que não? Quer dizer, uma árvore é a mesma árvore sempre. Uma zebra é zebra desde a hora que nasce.
V6NTURR: É, é... gosto disso, gosto muito. Mas, Hillman, como uma criança sabe o que vai acontecer?
HILLMRN: Não acho que a criança saiba o que vai acontecer; isso é excessivamente literal. Acho que a criança sente...
Não, há crianças que sabem o que vai acontecer. Lembra-se daquela grande violoncelista que morreu recentemente? Era bastante jovem. Jaqueline du Pré. Não sei do que morreu; era uma das maiores violoncelistas do mundo. Quando tinha 5 anos de idade ouviu um ceio no rádio e disse: “ Quero fazer um barulho como esse” , ou “ parecido com esse” . Ela sabia. Já estava lá. Às vezes é o que ocorre com os gênios musicais. Em geral eles já sabem.
V€NTURR: Realmente, agora que estou pensando nisso, não é tão raro entre artistas. Eu não sou um gênio, mas desde os 9 anos de idade sabia que seria um escritor e nunca fiz o menor esforço para ser outra coisa.
HILLMRN: É melhor não usar esses exemplos porque são muito óbvios. A maior parte das pessoas não é assim; aos 20 anos ainda estão tateando. Mas acredito realmente que existam vagas idéias, como pequenos nódulos no tronco de uma árvore. À medida que a árvore vai crescendo — a árvore jovem, digamos um pequeno carvalho —, forma pequenos nódulos que vão se tornar galhos, alguns grossos troncos. Acho que as crianças têm essas pequenas protuberâncias, têm tendências, têm suas pequenas pressões e pequenas obsessões.
V€NTURfl: E essas obsessões em geral não são respeitadas, muitos pais assustam-se com elas. “ Ele deveria sair mais, não procura os amigos.” “ Ela não deveria ser tão séria.” “ Como ele vai conseguir ganhar dinheiro, se só o que faz é desenhar?” “ Esse menino não é normal” — o que em geral significa “ essa criança nao é fácil” .
2H
Conheço uma moça que foi mal em todas as séries escolares, não alcançou as médias para se formar e só pôde fazê-lo por força de sua personalidade e por ser ótima líder e organizadora. No último ano ela foi diretora do conselho estudantil, organizando praticamente tudo o que acontecia na escola. Seu primeiro emprego, depois do ginásio, foi como garçonete num restaurante.Um ano depois, já era gerente do restaurante, e no ano seguinte tornou-se sócia. Aos 30 anos, produziu dois filmes e tornou-se executiva de um dos maiores estúdios de cinema. A educação ofe- v recida no ginásio foi-lhe totalmente inútil; ela aprendeu exercitando seu talento para os negócios e a política, como líder e organizadora. Então, não são só os artistas.
Pensando bem, vejo que acontece muito.HILLMRN: Mas nossa cultura não vê assim, não apenas por
que não temos teorias que nos façam enxergar, mas porque esses fenômenos (como você diz, não tão incomuns) solapam as teorias que existem, que construíram uma indústria muito lucrativa e que fazem parte de nossa fé inabalável na história.
V€NTURR: Acho que já temos uma imagem de como seremos. Sentimos em nós outras pessoas que são mais velhas e conversam conosco — de algum modo, falam conosco. Há dentro de mim um homem muito mais velho que conversa comigo diariamente, silenciosamente, quase sempre com muita gentileza e tolerância.Às vezes com severidade, quando de fato estou me prejudicando, mas sempre com muito humor. Gosto imensamente dele; parece ser minha melhor parte. Nunca tinha pensado em mim mesmo sob esse enfoque.
Hillman interrompe.V6NTURR: Não, deixe-me continuar enquanto estou pensan
do nisso. Quero falar de um outro aspecto ao qual acho que você não ia se referir. Conheço vários homens que, como eu, têm 40, quarenta e poucos anos, e já começam a sentir a meia-idade na pele. “ Meu corpo está me traindo” , dizem eles. Então pintam o cabelo e mentem sobre a idade. Conheço mulheres da mesma faixa etária, que não são madames de Beverly Hills nem estrelas de cinema e sim mulheres que nunca pensei que fariam isso fazendo implante de seios, plásticas — temo que elas estejam insultando profundamente a anciã que existe nelas. Esses insultos enfraquecem nossos anciãos interiores.
Quando elas chegam aos 65 anos, quando chega a vez de a sexuagenária existir, ela já foi tão insultada e está tão enfraquecida que não vai conseguir fazer sua parte.
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HILLMRN: Você está dizendo que nâo são apenas os nódulos, mas que há todo um elenco de personagens que é dado. Também acho isso. Vi um retrato de uma mulher — ela devia ter uns 44 anos. Era um desenho a bico de pena, muito bonito. Ela não gostava porque a fazia parecer muito velha. Eu disse: “ Esse desenho.^, é a anciã que espera por você no fim do corredor.” Eles estão todos lá. Essas figuras amigas estão sempre por perto e precisam ser fortalecidas diariamente, por toda a vida.
Michelangelo chamava-as de “ imagens do coração” .Sabe, como se pode ter 35 anos de idade quando ainda se tem
25? Deve haver uma aparência de 35 anos que assumimos.V6NTURR: Então, o que estamos dizendo é: “ Você não sabe
o que vai acontecer, mas sente as pessoas em você. É o seu destino, se a cultura ou a família não tiverem demolido esse jeito de sentir quando você ainda era pequeno.”
HILLMRN: A aparência das pessoas, as figuras, está tudo lá. Devemos fortalecer essas figuras à medida que vamos vivendo.
Hillman fa z uma pausa.Há muito medo de que não haja ninguém lá. Acredito ser es
se um dos maiores medos que há por trás de pintar o cabelo ou remover as rugas em torno dos olhos. “ Quando chegar aos 50 anos, estarei vazio, não haverá mais ninguém.” Que sensação é essa de vazio? É de não haver ninguém lá.
V6NTURR: E se insultamos tanto o ancião que existe em nós, se o atacamos sempre que, digamos, xingamos um velho no trânsito...
HILLMRN: — ou que está na nossa frente no caixa do supermercado e não paga logo a conta...
V€NTURR: Sempre que fazemos isso, assustamos e humilhamos o velho que há em nós, e ele se retrai tanto que acaba desaparecendo.
HILLMRN: Há outra maneira de se fazer isso. Sempre que se repete a ladainha “ não tenho tempo para sofrer” , sempre que se ignora uma doença. As doenças são, em parte, uma forma de nossos velhos se desenvolverem. São maneiras de aumentar o conhecimento que se tem do próprio corpo. As doenças contam coisas importantíssimas sobre o que se come, o que se passa nos intestinos, o que acontece com os testículos, o que há na pele. As doenças nos ensinam especialmente a envelhecer. Desvalorizá-las e suprimi-las só nos afasta dessas figuras.
Insultamos nossas pessoas interiores pelo que fazemos com nossa própria fraqueza.
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V6NTURA: E à medida que vamos envelhecendo, invertemos tudo e passamos a não gostar dos jovens.
HILLMAN: Ah, sim.V€NTURA: E quando atacamos os jovens com a mesma impa
ciência com que atacávamos as pessoas mais velhas, enfraquecemos os jovens selves que ainda estão em nós, tal como fazíamos com os selves mais velhos quando éramos jovens.
HILLMAN: Sem dúvida. Atacamos os jovens que há em nós. Como você disse, os jovens que nos impulsionam também criam as fantasias. E então não nos permitimos mais sentir ou imaginar a sexualidade, não nos imaginamos mais correndo riscos — os jo vens correm riscos espantosos! Simplesmente o fazem! Não nos arriscamos mais, no sentido de nos soltar, de deixar acontecer.
Há velhos incríveis que conheço e que já foram mestres em deixar acontecer, pessoas extremamente corajosas — alguns ainda o são; não têm medo de atravessar uma rua, de caminhar à noite.
V6NTURA: Nós rejeitamos e atacamos principalmente os adolescentes; não suportamos ficar perto deles porque nossa própria adolescência foi muito sofrida.
HILLMAN: A paixão, o romance, as fantasias suicidas da adolescência...
V6NTURA: E todos aqueles sonhos que não realizamos. Não há nada pior para se dizer a alguém que “ você está se comportando como um adolescente” .
HILLMAN: Que tal “ está parecendo velho” ?V6NTURA: Quando se chega aos 40 e à crise da meia-idade,
passa-se novamente por um outro tipo de adolescência e muitas das cascas são quebradas — mas isso não tem importância, é menosprezado. “ O que é que há com você, está na crise da meia- idade?”
HILLMAN: Passa-se por outra crise aos 60 anos.V6NTURA: E se a gente reage e diz: “ É isso mesmo; estou em
crise e é melhor você cair fora” , vão dizer que estou louco. “ Céus, o Ventura perdeu o juízo!” Mas o que a gente está dizendo mesmo é: “ Estou trocando a pele.”
HILLMAN: “ Estou trocando a pele e começando uma coisa, e quando começo alguma coisa fico meio doido.”
V6NTURA: “ O que é imutável em mim está parado em silêncio no centro de tudo o que muda, e muita coisa está sendo abandonada.”
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Eles ficam um tempo em silêncio. As pessoas que passam pelo banco onde eles estão sentados, os motoristas que avançam lentamente na estrada, os banhistas que se deitam ao sol, a tripulação de outro petroleiro que agora apareceu e os marinheiros de fim de semana que saem com seus pequenos barcos estão fora do pequeno círculo de silêncio que os rodeia. Por enquanto, nenhum do dois homens percebe nada.
V6NTURR: Está bem; então a psicologia do desenvolvimento, a idéia de que tudo o que sou agora foi causado na minha infância, acaba pondo de lado muita coisa e pode ser bastante ilusória. É. Mas e todo o tempo e dinheiro que gastei com terapia por ter sido molestado sexualmente e tudo mais? Foi importante na época.
HILLMAN {rindo): É, deve ter sido. E daí? Se fôssemos maliciosos, diríamos, como Ivan Illich, que foi um modo de manter o negócio da psicoterapia, que por sua-vez depende em grande parte de matérias-primas como a agressão, o trauma, o molesta- mento na infância. E se você for um crente — o que, inconscientemente, todos somos — do mito do desenvolvimento e não das sementes e dos nódulos, da estrutura e da essência, o que aconteceu lá atrás deve ter sido terrivelmente importante. Ora, e quanto ao fato de as crianças terem sido abandonadas, molestadas e sofrido agressões durante séculos, sem que ninguém tenha se importado?
V€NTURR: O que tem isso a ver? Eram culturas menos adiantadas que a nossa.
HILLMRN: Ora, você não acredita nisso.V6NTURA: Tudo bem, não acredito. Mas muita gente acredi
ta e vai além, afirmando que um dos grandes responsáveis pela destruição social, econômica e ecológica de nosso planeta foram as centenas de anos de agressão à criança. (A propósito, a história também não leva isso em conta. As relações sexuais forçadas existem entre nós desde os primórdios, a julgar pelos mitos antigos e os contos de fadas, e a destruição do planeta só vem acontecendo ativamente a partir da era industrial, há duzentos anos.)
HILLMRN: O fato de tanta gente sentir-se perturbada com a criança é exatamente o ponto que levantei antes: o arquétipo da criança domina o pensamento terapêutico de nossa cultura. Sustentar que a agressão é a coisa mais séria em nossa cultura, que nosso país está afundando por causa dela, ou que é ela a raiz da exploração e vitimização da terra, como dizem alguns, tudo isso é o ponto de vista da criança.
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I I
V6NTURR: E é prender-se a ele.HILLMRN: Não estou dizendo que as crianças não sejam mo
lestadas ou agredidas. Elas são molestadas e são agredidas; muitas vezes de modo absolutamente devastador. Mas a lerapia piora ainda mais o fato pelo modo como pensa sobre ele. Não é só ) v o trauma que causa danos, a lembrança traumática também.
V€NTURA: A terapia, na verdade, agrava a agressão e lucra com ela, pela forma como a considera. É isso que significa “ lembrança traumática” ?
HILLMRN: Bem, digamos que meu pai me ameaçou com uma cinta ou uma escova, ou me violou e me deu surras medonhas.Às vezes fazia isso porque estava bêbado, outras só porque era um maldito brutamontes, outras por não ter ninguém em quem bater. E eu fico me lembrando dessas agressões. Em minha memória, continuo vítima. A memória ainda faz de mim uma vítima. Além disso, ainda me mantém na posição de criança, porque ficou presa no ponto de vista da criança e eu não a mudei. Não é que a agressão a crianças não aconteça — não estou negando isso e nem que seja preciso acreditar que tenha ocorrido concre- tamente. Mas preciso ser capaz de pensar sobre a brutalidade — de reenquadrá-la, como se diz — numa experiência iniciática. Essas feridas que me foram causadas fizeram alguma coisa para que eu entendesse o castigo. Fizeram-me compreender a vingança, a submissão, a profundidade do ódio entre pais e filhos, um tema que é universal — e eu fiz parte disso. Estava no meio disso. Então, mexo na memória e, de algum modo, deixo de ser apenas uma criança vítima de um mau pai. Entrei nos contos de fadas e nos mitos, na literatura e nos filmes. Com meu sofrimento, entrei num mundo a um só tempo traumático e imaginário.
V6NTURR: Você entra naquilo que os povos tribais chamariam de “ tempo do sonho” .
HILLMRN: Sim. Faz parte do tempo do sonho.VéNTURR: Então, isso que lhe aconteceu não foi apenas no
cotidiano, mas também no tempo do sonho, pois tudo o que acontece em um lugar acontece também no outro. “ Tudo o que está em cima também está embaixo” , diz o velho ensinamento. O fato de ter-lhe acontecido no tempo do sonho significa que a) é um ato mitológico; e b) não aconteceu há vinte anos, está acontecendo agora, sempre aconteceu e sempre acontecerá. O que não é tão deprimente como parece. Isso quer dizer que o significado pode mudar sempre. É onde a vida real e a vida mítica se encontram.É isso que são as feridas.
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E então temos c), a agressão está no contexto do tempo do sonho de incontáveis atos mitológicos, alguns brutais e outros muito belos, em vez de somente no mito principal do seu ato.
Então, num certo sentido...HILLMRN: Fica mais intenso quando é menos pessoal.V6NTURR: Porque no tempo do sonho, no modo mítico de
pensar, a agressão liga-se a muitos outros fatos cuja importância é maior que eu.
HILLMRN: A terapia tende a confundir a importância do fato com a importância do eu.
V6NTURR: Há uma voz dentro de mim que diz: “ Mas de fato aconteceu, não é só mitológico!” Ao mesmo tempo, pergunte a um jornalista ou um policial: se você conversar com pessoas sobre um fato do qual todas elas participaram ou testemunharam, serão vários fatos diferentes. Isso acontece na minha própria família; se você pedir a mim e a minha irmã que descrevamos nossa mãe, serão duas mães totalmente diferentes e nenhum de nós estará mentindo. A memória é uma forma de ficção e não podemos fazer nada quanto a isso. Assim, somos em grande parte criação das ficções que contamos sobre nós mesmos. E sem saber que o que contamos é ficção.
HILLMRN: Não percebemos que estamos contando histórias fictícias.
Acho que Freud chegou perto disso quando disse: “ É o que você se lembra, não o que realmente aconteceu.” É a memória que na verdade cria o trauma, Hoje em dia, muita gente ataca Freud, dizendo que ele encobria e não admitia a ocorrência de agressão em crianças. Quer tenha ocorrido ou não, a idéia de Freud, tão notável, é que importa o que a memória faz com eles.
Nós não sabemos que estamos contando ficções. Esse é o maior problema da formação dos psicoterapeutas: eles não aprendem com a literatura, o teatro, as biografias. O aspirante a terapeuta faz estudos de casos e diagnósticos, coisas que nem sempre estimulam a imaginação. Por isso não percebe que está negociando ficções. Isso não quer dizer que as coisas também não sejam reais...
V6NTURR: mas o que se tem no consultório, e não poderia ser diferente, é alguém contando uma ficção. A forma é uma ficção. Você está certo, é estranho que alguém cujo trabalho consista em grande parte em ouvir histórias fictícias não tenha familiaridade com a literatura, o jornalismo e até os autos processuais, não tenha aprendido como as pessoas contam histórias.
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HILLMRN: Em relação à agressão, a verdadeira agressão na primeira infância, o que mais prejudica, além do choque, horror e o mais, é o fato de a agressão fazer com que a pessoa tome a imaginação ao pé da letra. Ou leva a imaginação ao pé da letra ou dissocia-a em personalidades múltiplas, para que ela se estilhace. E isso é um dano. Mas há jovens entre 13 e 17 anos que são, digamos, seduzidos pelo padrasto (ou por quem que seja); tem-se aí uma agressão de qualidade diferente, diferente da agressão a uma criança de 3 ou 2 anos de idade. Os níveis são bem diversos, mas foram agrupados num só, de modo que há todo tipo de gente que se diz vítima de molestamento e identificando-se como uma criança magoada. A sedução nas famílias, como você disse, é uma coisa muito antiga. Não é o mesmo que violar brutalmente uma criança. Temos que manter algumas gradações distintivas...
V6NTURA: porque, se não o fizermos, não poderemos refletir bem sobre o assunto.
Quando as lembranças de abuso sexual começaram a surgir — o que ocorreu exatamente no dia em que fiz 14 anos —, depois de um mês batendo o carro e entrando em buracos negros, fui procurar um terapeuta. Era um homem idoso, junguiano. Eu falava sem parar da agressão e de minha mãe, e ele, meio sorrindo, disse-me: “ Sabe, o que aconteceu estabeleceu sua conexão com os mistérios da alma, não é? E é sobre isso que você escreve, não é? Ou preferiria escrever sobre outra coisa?”
Fiquei petrificado com o que ouvi. Não diminuiu a raiva nem o medo que sentia de minha mãe, mas arrancou-me aos trancos da posição de ver a experiência como criança. Tive que encará-la do ponto de vista de minha vida adulta. Não que tenha me livrado da imensa raiva que sentia por minha mãe ou por outras pessoas da minha infância e adolescência que atentaram contra mim, mas...
HILLMRN: Quando você diz, “ Não me livrei” , pressupõe-se que essa raiva por sua mãe devesse ir para outro lugar. Eu não aceito isso.
V6NTURA: Bem, esse pressuposto é amplamente admitido em nossa cultura e implica que a cólera, a raiva e o sofrimento devam ser processados. É uma palavra que odeio, diga-se de passagem: psique processada, como alimento processado.
HILLMRN: É... como saborosas e finas fatias de queijo. Embaladas e etiquetadas.
V6NTURR: Mas o que se deve fazer com esse material senão processá-lo? Como é que se vai “ individuar” , ou mesmo crescer, se não se processar tudo isso?
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HILLMRN: Bem, o que fez Jonathan Swift? Escreveu as sátiras mais notáveis. O que faziam as pessoas nas peças de vingança elisabetanas ou jacobianas? Esse material é tremendamente poderoso. O que fez Joyce com o que sentia pela Irlanda? E Faulk- ner com o que sentia pelo sul? Esse tipo de processamento é realmente difícil. É desse material que se faz a arte. “ Não quero que me tirem os demônios porque estarão me tirando também os anjos” , disse Rilke sobre a terapia. O caráter se faz de feridas e cicatrizes. A palavra caráter significa, na sua raiz, “ marcado ou gravado com linhas profundas” , como as marcas das iniciações.
V6NTURR: Hei, nem todo mundo é artista! Nem todo mundo é um Joyce ou Jonathan Swift. A maior parte de nós apenas trabalha uma ou outra coisa desarrumada. O que nós devemos fazer?
HILLMRN: Não leve os artistas tão ao pé da letra. É que eles têm um modo de fazer a imaginação trabalhar com essas coisas poderosas. Eles são meros exemplos de pessoas que usam a imaginação para trabalhar. Por isso é bom ler suas biografias, para saber o que eles fizeram com seus traumas; mostram o que a imaginação pode fazer — não o que eles fizeram — com a raiva, o ressentimento, a amargura; com sentimentos de inutilidade, inferioridade e desvalia. Os artistas buscaram na imaginação formas de processar tudo isso, se preferir.
Outra coisa: com sua pergunta você assume mais uma vez que não se pode carregar minério bruto por aí. Suponhamos que tudo isso seja minério.
V6NTURR: São pedras na psique — “Tenho pedras na cabeça.”HILLMRN: Minério, pedras que moldam o caráter, moldam essa
idiossincrasia única que é você. Assim como se tem cicatrizes físicas, tem-se marcas na alma. São as pedras. São o que você é. É típico de nossa cultura achar que elas possam ser lapidadas. Não será essa a fantasia da transformação? Todo mundo querendo ser bom? A serviço dessa fantasia, abusamos de nossa matéria-prima.
Quer dizer, você olha outra cultura e vê pessoas sofrendo com as circunstâncias da vida. Por “ outra cultura” refiro-me à cultura da rua — os negros, os latinos e os mendigos que vivem por aí, a mulher deitada na grama ali na frente.
V6NTURR: É, se você for artista, saberá que todo esse material é seu minério — eles sabem, e por isso tantos passam longe da terapia. Não querem que seu minério seja mal processado.
HILLMRN: O que impede que o minério seja valorizado como tal é a obsessão com o processamento, a obsessão com a idéia de
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torná-lo uniforme. Não é nada perigoso, a menos que se acredite que o minério não deva existir. É a isso que me refiro quando digo que a atitude terapêutica fere o verdadeiro potencial das pessoas. Como diria Ivan Illich, a terapia quer melhorar o sofrimento do minério. E nossa cultura aceita a idéia que ele precisam e l h o r a r . ____________________________
V6NTURA: Então, se é isso que a terapia não pode, não deve fazer, o que é que ela podei
HILLMAN: Fazer-com-que-as-coisas-sejam-sentidas.Chamava-se isso de supressão da repressão e integração à cons
ciência. Prefiro dizer, fazer com que as coisas sejam sentidas.Vejo isso como uma espécie de abertura de canais, galerias
e túneis; uma obra gigantesca de abertura de passagens secundárias, intercaladas com todo tipo de tubulação, para que as coisas fluam umas em direção às outras. Memórias, fatos e imagens, tudo é reavivado. E o que sentimos pelo minério fica mais sutil. Ensinar a apreciá-lo: isso é o que a terapia pode fazer.
V6NTURA: Então você não está dizendo que não se faça terapia.
HILLMAN: O que estou dizendo é: “Se você fizer terapia, cuidado com a conivência entre o terapeuta e sua parte que não quer sentir o minério, aquela que o processa.” Há muitas formas de reprimir o que se sente pelo minério e uma delas é processá-lo. As várias escolas de terapia têm diferentes sistemas de processamento, mas todos são fixadores. A meu ver, fixar o que está errado é reprimir o minério.
V6NTURA: “ Processar” , freqüentemente, é “ repressão” disfarçada! Isso é mesmo engraçado.
HILLMAN: “ Isso dói muito!” E a primeira reação para ver-se livre da dor é perguntar: “ O que faço com ela? O que devo tomar?”
V6NTURA: “ Que denominação clínica posso dar?”HILLMAN: “ Qual é o tratamento?” Essas são maneiras de li
dar com “ isso dói” . Mas até que se entre na dor, até que se tenha explorado a ferida, nada se sabe sobre ela. Não se sabe porque existe. Por que a psique colocou-a ali?
V6NTURA: “ Explorar a ferida” soa tão suspeito quanto processar. “ Trabalhar para vencer os obstáculos...”
HILLMAN: é o termo pelo qual o processamento é usualmente conhecido. Não é a isso que me refiro quando digo “ explorar a ferida” . A pergunta é: “ Como é que a terapia realmente funcio-
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na?” Não tenho certeza de que a terapia em si — isto é, os in- sights, as compreensões, as recordações, sua participação nelas, fazer com que aflorem, observar os padrões, abreacting...
V6NTURA: O que quer dizer abreacting?HILLMAN: Quer dizer “ tirar para fora” — não estou certo se
algum desses modos de exploração interior, que se supõe serem formas de processamento psicológico, realmente fazem isso. Acho que o que faz são os seis meses ou seis anos de pesar e lamentação. O longo ritual da terapia.
V€NTURfí:;Ah...HIllMflN: As horas mudas.V6NTURA: Regredir sempre, voltar cada vez mais, falar tan
tas vezes sobre a mesma porcaria, sem se importar com o que se diz ou se pensa, mas voltando sempre para ela.
HILLMAN: Até que não seja mais a mesma. O corpo absorve o golpe. Mas não sei se isso acontece porque você a processou, porque teve um insight, ou porque a compreendeu. Acho que poderia também acontecer a uma mulher que chora aos pés do altar de São José.
V6NTURA: Porque você fica sentado com a porcaria.HILLMAN: Sentado nela.V6NTURA: Dentro dela. E estar nela, da forma que for, é
explorá-la.HILLMAN: Você fica um pouco nela, depois fica com ela, e
depois a visita.V€NTURA: E então ela anda ao seu lado e não mais em cima
de você.HILLMAN: E pode até seguir seu curso.V6NTURA: E por que isso não seria um processamento?Hillman fica em silêncio.V6NTURA: Vou lhe dizer por que não é um processamento.
Porque você não está pegando, purificando, transformando uma coisa em outra.
HILLMAN: Não está transformando.V6NTURA: Processar implica fazer do minério um arado; fa
zer dele uma ferramenta para uma vida mais eficiente. E implica que, de algum modo talvez mágico, se fizer isso o minério deixará de existir.
HILLMAN: “ Posso usá-lo ou livrar-me dele; é uma grande besteira tê-lo por perto quando não serve para nada, mas continua lá.” É isso que faz de nós, os brancos americanos, psicologicamente
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amadores e inocentes. Não temos tudo o que precisamos em nossa psique porque estamos constantemente tentando nos livrar do minério! Não somos psicologicamente sofisticados.
Prefiro não afirmar se é ou não é processado. É melhor dizer: “ O que acontece se chamarmos isso de processamento?” Você descreveu o que acontece: ou a pessoa tenta se livrar dele ou torná- lo útil. É uma exploração. A noção de transformação que prevalece na terapia é: transforme o inútil em algo útil.
V6NTURR: A ideologia de consumidor. Você consome sua psique como consumidor e como carnívoro.
HILLMRN: E também como industrial: tira lucro dela.V6NTURR: E a psique não gosta nada. O que ela diz então?
“ Está bem, vou fazer de você um chato!”HILLMRN {rindo): Achei que você fosse dizer outra coisa. Achei
que diria: “ Muito bem, aqui vai mais uma queixa!”V6NTURR: Se ela ainda gostar de você, vai lhe dar outra chance
apresentando-lhe algo novo para lidar. Mas se já estiver cheia, dirá: “ Vou fazer de você um chato.”
HILLMRN: E você vira um queijo processado.V6NTURR: Que está no ponto, bem temperado, e como você
não quer “ sair do ponto” , vai evitar os extremos. Talvez até tenha um bom casamento com alguém tão chato quanto você.
HILLMRN: Felizmente, em geral isso não funciona; os deuses não o permitem.
VÉNTURA: Concordo. Esses deuses do casamento são loucos.HILLMRN: Ges querem muito mais.V6NTURR: E a psique diz aos terapeutas, especialmente: “ Vou
fazer de você um chato.” Conheço muitos que se queixam disso.HILLMRN: Ah, sim. A atmosfera repressiva da terapia...V6NTURR: repressiva para o terapeuta...HILLMRN: pois prega que a psicologia tem que ser respeitá
vel. Isso produz forte repressão no psicólogo de hoje. Não temos permissão de andar pelas ruas. Temos que ter cuidado, ser corretos; nem extremistas nem radicais, não nos misturar aos pacientes no mundo exterior. E isso faz vergar nosso pensamento para uma psicologia da classe média branca. Um amigo me disse: “ O problema de envelhecer como terapeuta é não poder permitir que minha excentricidade se expanda.” Porque o que se espera do terapeuta é que ele seja assíduo, pontual, uma pessoa enquadrada e razoável. O terapeuta incorpora inconscientemente o objetivo da terapia.
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V6NTURR: O terapeuta incorpora inconscientemente o objetivo inconsciente da terapia.
HILLMRN: Bem, não é o meu objetivo. O objetivo de minha terapia é a excentricidade, derivada da noção junguiana de indi- viduação. Jung diz: “ Você se torna o que é.” E ninguém é enquadrado. Todos temos, como dizem os suíços, um canto a menos.
V6NTURR: Não é processar e nem crescer, porque dá no mesmo, porque são atitudes consumistas perante a vida. Então o que poderia ser?
HILLMRN: Acho que é vida. É isso mesmo. Significado: viver a vida. Rousseau disse: “ Aquele que dentre vocês for o mais bem- educado é o que levará consigo as alegrias e as tristezas da vida.” A educação estava relacionada às alegrias e tristezas. Você prefere chamar de educação? Mas isso também não seria muito chato?
V6NTURR: Há também todas as palavras que os adeptos da Nova Era tornaram tão desagradáveis, como “ jornada” .
HILLMRN: Vou lhe dizer o que sinto. Sinto que é uma missão, uma devoção.
V6NTURR: A quê?HILLMRN: Aos deuses. Sinto que essas coisas ocorrem e que
são o que a psique quer ou envia a mim. O que os deuses enviam a mim. Há uma passagem encantadora de Marco Aurélio: “ Em tudo o que faço tenho sempre em mente a comunidade. O que acontece a mim, o que recai* sobre mim, vem dos deuses.” E “ recai” é uma palavra muito importante, porque é dela que deriva a palavra “ ocorrência” : cadere, cair. Em alemão, a palavra para “ ocorrência” é fali. Então, o que recai sobre a gente é o que nos acontece, é também a origem da palavra grega pathos — o que despeja sobre, o que fere, o que acontece, o que cai sobre, como a gente cai, como os dados caem.
V6NTURR: Sabe, nós estamos dando voltas em torno da premissa básica da vida americana que contaminou a terapia: “ As coisas deveriam estar certas. Se não estão, é porque estão muito, muito erradas.”
HILLMRN: Então o que acontece com o pathos, a patologia da nossa vida, “ aquilo que não pode ser aceito, não pode ser mudado e que não desaparece?”
V6NTURR: Você passa o resto da vida com ele.HILLMRN: O que vem a ser uma devoção. Uma missão. O que
mais se pode fazer?
* No original, befall. (N. do E.)
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Longa pausa.O que mais se pode fazer?Essa é a limitação humana. É o que os gregos diriam: ser mor
tal é ser trágico.VéNTURR: Então não temos uma palavra para substituir pro
cesso, e talvez não queiramos tê-la!Ambos riem.HILLMRN: Certo. É melhor assim. Nós não temos uma pala
vra que substitua processo...HILLMRN E V6NTURR: e não queremos ter.HILLMRN: Nem estamos em processo de querer.VéNTURA: Porque faz parte do conceito de processo encon
trar uma palavra para substituí-lo e mandar tudo para o inferno. Também não temos palavra que substitua crescimento', e talvez não queiramos tê-la.
Estamos falando sobre viver.HILLMRN: Aceitar também.V€NTURA: Aceitar esse peso.HILLMRN: Espere. Aceitar o peso não é aceitar o peso do Ho
mem. Esse tem sido o grande erro. “ Fiz minha parte.” Não estou falando de servir ao Homem. É aí que a rebelião e a subversão são importantes. Estou falando de servir aos deuses.
V6NTURA: Qual é a diferença?HILLMAN: Você pode livrar-se do Homem. Pode mandá-lo ca
lar a boca.V6NTURA: Mas com os deuses não dá.HILLMAN: Você pode até alcançar o Nirvana, mas os deuses
saberão onde está.Não sei se os deuses nos amam, como dizem aos cristãos, e
nem se estão muito interessados em nossas decisões e preocupações, mas certamente não desistem fácil de nós. Na Itália, os editores intitularam um de meus livros A fuga inútil dos deuses. Como você vê, eles vêm até nós através de nossas patologias, por isso a patologia é tão importante. É a janela por onde entram os demônios e os anjos.
V6NTURA: Eles não nos amam, mas não nos deixam livres. Isso lembra um pouco a família.
HILLMAN: “ Evocados ou não, os deuses se fazem presentes.” Jung colocou esse dístico em latim sobre a porta de entrada de sua casa. Esculpido em pedra. Então, podemos também servir a eles de bom grado.]É como entendo a vontade humana: é simplesmente fazer o que deve ser feito, voluntariamente.I
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V6NTURA: Eles não nos amam, mas continuam presentes. Butch Hancock tem uma música que diz: “ Ela era um exemplo de bondade, ela nunca me deu uma folga.” Eles nos amam e fazem a mesma coisa.
Ele fica um pouco em silêncio.“ Servir ao Homem” significa reconciliar-se com o sistema,
a autoridade, o que é muito diferente de servir aos deuses. Ninguém pode rebelar-se contra os deuses — ou pode, mas esse é só outro passo da dança. É melhor rebelar-se contra a autoridade.
Pelo menos é assim que entendo. E para você, como é?HIllMAN: Veja. Nosso pressuposto, nossa fantasia na psica
nálise, tem sido processar, crescer e nivelar as coisas para que não tenhamos mais emoções diante de fatos fortes e perturbadores.
V€NTURA: É bem provável que isso esteja além das possibilidades humanas.
HILLMAN: Mas se a análise tivesse outras fantasias próprias, o consultório se transformaria numa célula onde se prepara a revolução?
V6NTURA: O quê?HILLMAN: Poderia...V6NTURA: poderia o consultório ser uma célula onde é pre
parada a revolução? Jesus! Isso é possível?HILLMAN: Por revolução refiro-me à grande virada. Não a um
desenvolvimento nem a um desdobramento, mas a virar pelo avesso o sistema que faz você procurar antes a análise — um sistema governado por minorias e por conspiradores, segredos oficiais, segurança nacional, poderes corporativistas, et cetera. A terapia poderia imaginar-se investigando as causas sociais imediatas, mesmo mantendo o vocabulário de abuso e vitimização — sofremos menos abusos e fomos menos vitimizados em nossa vida pessoal passada do que pelo sistema atual.
É como desejar que seu pai o ame. Desejar o amor do pai é imensamente importante. Mas o pai não satisfaz esse desejo seu. Você não abre mão do desejo de ser amado, mas quer parar de pedir isso ao seu pai; ele é o objeto errado. Aí não quer se livrar da sensação de que estão abusando de você — acho que isso é importante, a sensação de que estão abusando de nós e de que somos impotentes. Talvez não devêssemos imaginar que somos agredidos por nosso passado mais do que pelas atuais situações como “ meu emprego” , “ minhas finanças” , “ meu governo” — tudo isso com que convivemos. Então o consultório torna-se uma célula revolu
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cionária, porque nós também estaríamos indagando “ o que está mais me agredindo neste momento?” Seria uma grande aventura se a terapia fizesse isso.
V6NTURR: Vamos voltar um pouco. Você disse que a análise poderia ter novas fantasias próprias? Que fantasias são essas? Para a maior parte das pessoas elas estão associadas ao “ irreal” .
HILLMRN: Ah, não, não. A fantasia é a atividade natural da mente. Jung disse: “ A atividade primária da vida psíquica é a criação de fantasia.” A fantasia é um modo de perceber as coisas, de pensar sobre elas, de reagir a elas.
V6NTURR: Então, toda percepção, nesse sentido, é fantasia.HILLMRN: Existe alguma realidade que não seja enquadrada
ou moldada? Não. A realidade sempre nos chega através de um par de óculos, de um ponto de vista, de uma linguagem — uma fantasia.
V6NTURR: Mas para que a terapia tome essa nova direção, tenha essa nova percepção ou fantasia de si mesma, acho que precisa redefinir alguns de seus conceitos básicos.
Hillman sorri, olha ao longe. A luz mudou, o sol logo estará se pondo, a brisa do mar de repente ficou fria. A mendiga enrola-se em sacos de lixo e murmura alguma coisa. O tráfego na estrada volta ao normal. As luzes do petroleiro estão acesas e logo ele desaparecerá no horizonte. E as luzes do pier de Santa Monica também acenderam, tristes como a alegria forçada.
HILLMRN: Talvez a idéia de self tenha de ser redefinida.V6NTURR: Isso seria revolucionário. Se pegasse, acabaria mu
dando toda a cultura.HILLMRN: A idéia do self deve ser redefinida. A definição da
terapia vem das tradições protestante e oriental: o self é a interiori- zação de um deus invisível e distante. O divino interior. Mesmo que esteja disfarçado em um mecanismo de equilíbrio autopropul- sor, autônomo e homeostático; mesmo que esteja disfarçado em uma profunda intenção de integrar toda a personalidade, ainda assim é uma noção transcendental, com implicações, senão com raízes, teológicas. Eu preferiria definir o self como interiorização da comunidade. E se fizermos esse pequeno movimento, sentiremos tudo de modo muito diferente. Se o self fosse definido como a interiorização da comunidade, as fronteiras entre eu e o outro seriam muito menos claras. Eu estaria comigo mesmo quando estivesse com outros. E não estaria sozinho quando estivesse caminhando, meditando, ou em meu quarto, imaginando ou trabalhando os meus sonhos. Na verdade, eu estaria longe de mim mesmo.
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E os “ outros” não incluiriam somente outras pessoas, porque a comunidade, do modo como a vejo, é algo mais ecológico, pelo menos mais animista. É um campo psíquico. E se não estou num campo psíquico com outros — com pessoas, prédios, animais, árvores — eu não existo.
Então, não se trata de “ penso, logo existo” . (<Cogito ergo sum, como disse Descartes.) Mas, como ouvi outra noite, “ convivo, logo existo” . Convivo ergo sum.
V€NTURR: Sem dúvida, essa é uma redefinição de self.HILLMRN: Sabe, grande parte de nossa vida é pianíaca. Posso
ver 34 canais de TV, posso usar o fax para me comunicar com pessoas em toda parte, posso estar em muitos lugares ao mesmo tempo, posso sobrevoar o país de ponta a ponta; alguém me aguarda ao telefone, e eu posso atender duas chamadas ao mesmo tempo. Vivo em toda parte e em lugar nenhum. Mas não conheço meu vizinho. Quem mora no apartamento ao lado? Quem mora no 14-B?
Não sei quem é, mas estou falando ao telefone, uso o telefone do carro, do banheiro, do avião; tenho uma amante em Chicago, moro com minha mulher em Washington, a ex-mulher mora em Phoenix, minha mãe, no Havaí, e meus quatro filhos estão espalhados pelo país. Os fax chegam dia e noite, tenho acesso a todas as bolsas de valores do mundo, os fundos de commodities, estou em toda parte, amigo — mas não sei quem mora no 14-B.
Percebe que a hipercomunicação e a hiperinformação participam do que mantém a alma a distância?
V6NTURR: Ãh, sim. É isso mesmo. Más... talvez por ser um escritor, ou porque tive essa formação — quando estou só é quando me sinto mais eu mesmo.
HILLMRN: Não é por ser um escritor e nem por ter se formado assim. Esse treinamento começou há uns dois mil anos.
VÉNTURR: Como?HILLMRN: É um treinamento que enfatiza o recolhimento, a
interiorização — no sentido agostiniano de confissão, ou no sentido jeronimiano de retirar-se para o deserto. É o resultado de uma longa disciplina para afastar-se do mundo natural da comunidade. É uma noção monacal. Uma noção santificada.
E há outra razão para você ter a convicção de que é mais você mesmo quando está sozinho: é mais familiar. Você vive uma rotina de hábitos, repetitiva. “ Isso sou eu, porque está no mesmo padrão” ; é reconhecível. Quando estamos com outra pessoa, fi
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camos afastados de nós, porque o outro flui para nós e nós fluímos para ele; há surpresas, perdemos um pouco o controle e passamos a achar que esse não é nosso self verdadeiro. Perder o controle é a comunidade agindo através de nós. É o nosso locus agindo através de nós.
V6NTURR: Mas se isso acontecer por muito tempo, acabaremos na Praça Nuremburg com o braço erguido. Ou mais perto de casa, balançando bandeiras e fitas amarelas por razões que nem sequer nos preocupamos em entender. Isso é a comunidade agindo através de você. Se a comunidade age através da gente por muito tempo, paramos de existir. E quando não existimos desse modo, estamos abertos a qualquer força, idéia ou demagogia que nos queira possuir.
HILLMRN: Por que você usa essa imagem de multidão e de conformismo fascista quando abrimos mão do conceito de self?
V6NTURR: Porque já sofremos muito neste século, e continuamos sofrendo, pelo fato de as pessoas terem aberto mão da sua individualidade.
HILLMRN: Isso é verdade. Mesmo assim, acho interessante que tenhamos nos utilizado dessa imagem. Não usamos a imagem de uma sociedade tribal, onde eu ainda continuo sendo o João- Perneta.
V6NTURR: É verdade. É um detalhe interessante, muito significativo, que nas sociedades tribais, nas quais achamos existir pouquíssima individualidade, as pessoas tenham os nomes mais individuais. Nomes que derivam de seus sonhos e de suas ações e que raramente se repetem ou são transferidos, por serem tão individuais. É como se, por se compatilhar tanta coisa e transferir tantas outras, a individualidade passasse a ser tratada com mais respeito pela comunidade.
HILLMRN: Na vida e na religião tribais freqüentemente há lugar para pessoas diferentes — homossexuais, visionários, eremitas, pessoas com dons ou poderes especiais. Isso também não era desconhecido nas aldeias. E nem na vida urbana dos antigos gregos. Não que fossem sociedades perfeitas...
VéNTURA: pois a perfeição não é uma possibilidade humana...
HILLMRN: mas temos exemplos de se/ves-como-comunidade que não são totalitários e que respeitam a individualidade.
Eu não aceito essas oposições simplistas — ou o controle do self individual, ou a massa totalitária e insensata. Esse tipo de fan-
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lasia nos faz temer a comunidade. Ela nos tranca dentro de nossos selves isolados, completamente sozinhos, ansiando por conexões. De fato, a idéia de render-se à multidão facista resulta do self isolado. É o velho ego apolíneo, altivo e límpido, assustado com a turbulência dionisíaca.
Temos que pensar na comunidade como uma categoria completamente diferente. Não são indivíduos que se juntam e se relacionam e nem é a massa. Para mim, comunidade significa simplesmente o pequeno sistema no qual estamos situados num dado momento e que pode ser o escritório, a casa com seus móveis, a comida e o gato, ou conversar no vestíbulo com o vizinho do 14-B. Em cada caso o self é um pouco diferente, e o self verdadeiro é o seu self tal como ele é em cada situação: um self entre outros, não um self isolado.
V6NTURR: E quando perguntamos, “ E as pessoas do 14-B?” , será que é porque as respeitamos como parte da comunidade, ou como indivíduos? Nem um nem outro, se escolhermos ficar totalmente desconectados delas. E se elas aceitarem ficar separadas de nós, também não estarão respeitando nenhum de nossos papéis. Afinal, estamos falando de vizinhos. Sim, ignorar o fato de que se é ou se tem um vizinho é um profundo desrespeito, pelo outro e por nós mesmos, e é exatamente o que acontece hoje em dia em nossas cidades e subúrbios. Eu admito que ignoro meus vizinhos e aposto que você faz a mesma coisa.
HILLMRN: Acho que é absolutamente necessário, hoje em dia, para a nossa vida espiritual, ter uma comunidade para se viver. Sem dúvida, tenho amigos queridos de há mais de trinta anos que vivem hoje em Burma, ou no Brasil. E eles estão à minha disposição quando eu precisar, em caso de emergência. Mas isso basta? Para a manutenção do mundo? Definitivamente, não. Penso que, para manter o mundo, esse tipo de comunidade, a local, exige prestação regular de serviços. E é muito desagradável, difícil de agüentar, dar-se conta da quantidade de serviços que se espera que prestemos — não o amigo distante, mas os vizinhos do 14-B.
V6NTURR: O que a terapia poderia fazer com isso? Quer dizer, com os rebeldes e dissidentes?
HILLMRN: Parte do tratamento dessas dificuldades é olhar a agenda de alguém, suas anotações, suas listas. Porque a agenda é uma das nossas maiores defesas.
V6NTURR: Discutir minha agenda?
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HILLMRN: Exatamente. Vou dizer uma coisa: tenho encontrado resistência muito maior do que você imagina quando tento mexer na agenda de alguém, ou modificá-la.
V6NTURA: Iria encontrar um caminhão de resistência se tentasse mexer na minha.
HILLMRN: Você nunca faz perguntas à sua alma quando organiza sua agenda?
V6NTURA {gemendo)'. Minha alma acaba de me soprar: “ Ele nunca faz isso!”
HILLMRN: A tarefa passa a ser, então, descobrir como a alma acomoda-se ao seu dia. Em relação aos sonhos, às pessoas, ao tempo de que você dispõe. Porque a defesa maníaca contra a depressão é manter-se extremamente ocupado — e ficar muito irritado quando se é interrompido. Esse é um dos sintomas da condição maníaca.
V6NTURR: Eu e muitas pessoas que conheço, em geral, somos muito ocupados para sermos qualquer outra coisa. Sim, é maníaco e de certo modo sabemos disso. Você diz que é uma defesa contra a depressão. Voltando ao que dizíamos e supondo que a fonte da depressão esteja no presente e não em vinte, trinta anos atrás, a questão é: que depressão crônica é essa — depressão como indivíduos, como cidade, como cultura — que tentamos evitar sendo maníacos crônicos?
HILLMRN: A depressão que estamos tentando evitar pode muito bem ser uma reação prolongada e crônica ao que estamos fazendo com o mundo, o lamento e o pranto pelo que temos feito à natureza, às cidades, a povos inteiros — a destruição de grande parte deste mundo. Estamos deprimidos em parte por ser essa a reação da alma ao nosso lamento e pranto inconscientes. A dor de ver destruídos os arredores de onde me criei, de ter perdido a terra produtiva que conheci quando criança...
V6NTURA: e a sensação dos mais jovens de que certas coisas pertencem ao passado, pois eles não as conheceram e jamais conhecerão...
HILLMAN: tudo o que se perdeu e desapareceu. Porque é com isso que se parece a depressão.
Pinta-se a história nacional de rosa e branco e a pessoal de cinza. Estamos sempre prontos para admitir que estamos-presos a nossa história pessoal, mas nunca se ouve dizer o mesmo em relação à história nacional.
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V€NTURA: Ou em relação à história de nossa civilização. O que, de modo inverso, vem a ser um indicador de quanto acreditamos realmente no self como interiorização da comunidade; porque negamos demais a importância das histórias nacional e cultural e seu obscurantismo. Não as negaríamos tanto se não fossem tão importantes. A força da rejeição dá a medida do tamanho do medo e da perda.
HILLMAN: Acho que também perdemos a vergonha. Dizemos que nossos pais nos envergonharam quando éramos pequenos, mas perdemos a vergonha diante do mundo e dos oprimidos, vergonha de estarmos errados, de estarmos em dívida com o mundo. E transformamos essa vergonha em culpa pessoal.
Talvez a forma de iniciar a revolução seja tomar partido da própria depressão.
V6NTURA: Isso é deprimente. Existem tantas coisas contra as quais se revoltar! Tantos pensamentos feios, no fundo movido pelo dinheiro, a desculpa para tanta estupidez e crueldade. Mas começamos dizendo que as coisas, os objetos, não são passivos, e que através deles o mundo está revidando. E daí?
HILLMAN: Veja bem: toda grande mudança exige uma destruição. Chernobyl — parece que não nos afetou aqui, nos Estados Unidos, mas na Europa ninguém podia comer verduras, beber leite; a carne de rena na Escandinávia foi contaminada. Isso altera imensamente os valores. De repente certas coisas dão vida e outras são mortais. Até certo ponto, o dinheiro não conta mais; Chernobyl não tem preço. Então, a mudança do pensamento básico financeiro começa através de sintomas. Começa por intermédio do veneno. Valdez, Bhopal e Chernobyl intoxicaram seus arredores, tomando-os maus e venenosos — isso vai além do dinheiro. A ameaça da morte nos faz ir além dos valores determinados pela economia. Depois das catástrofes o dinheiro perde o valor. A natureza, e a qualidade da alma passam a ser os yalores supremos. Perguntamos: isso é bom? Isso é útil, é belo? E não “ quanto custa?”
V6NTURA: Isso certamente seria revolucionário. Alterar a natureza dessa pergunta fundamental — quanto custa? — mudaria tudo. E o consultório poderia tornar-se uma célula revolucionária, se a terapia localizasse nossos problemas mais no presente e dirigisse nossa atenção para o mundo, em vez de apenas para dentro, porque, no final, a pergunta acabaria sendo “ quanto custa?” “ Qual é realmente o preço que pago por minha vida?”
Ventura ri.
HILLMRN: O que foi?V6NTURR: Imediatamente, este meu ganancioso e pequeno self
privado, este que só se importa com seus relacionamentos e gostaria de mandar as pessoas do 14-B cuidarem da própria vida, é ele que salta à frente e pergunta: nessa nova terapia revolucionária, onde fica o a-m-o-r?
HILLMRN: Sabe, às vezes tenho uma sensação — é lenta e lembra muito estar com a pessoa amada, tomar um café da manhã , ■ agradável, comei uma coisa gostosa... Tudo isso tem a ver com a beleza, a substância do amor. Acredito que “ trabalhar” os relacionamentos pessoais estraga tudo. Esse “ trabalho” não é estético nem sensual, que, para mim, são o próprio amor. Estético, sensual e bastante prazeroso. O amor não é resultado de algo que se trabalhe. Então, a forma como a terapia aborda o amor, aclarando os relacionamentos, pode esclarecer os distúrbios de comunicação, as inibições, a insensibilidade habitual; pode até melhorar o sexo, mas não acho que libere o amor; não acredito que o amor seja algo que possa ser trabalhado.
V6NTURR: Nas últimas décadas, nossa cultura tem andado bastante ocupada tentando esquecer essa diferença — entre um ‘ ‘relacionamento” e o “ amor” . Usar a palavra estética num “ relacionamento” ia fazer com que muita gente trocasse olhares de espanto.
HILLMRN: O'amor e isto — estético e sensual. E quando esses aspectos não entram em ação, a outra pessoa vira um pouco um camelo que carrega todo o peso pelo deserto desse relacionamento — além da própria bagagem, também a do outro. Não admira que os camelos salivem tanto.
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