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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
MARIANA ROCHA ZACHARIAS
A CAMPANHA POR ELEIÇÕES DIRETAS SEGUNDO O CARTUNISTA HENFIL (1983-1984)
CURITIBA
2010
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MARIANA ROCHA ZACHARIAS
A CAMPANHA POR ELEIÇÕES DIRETAS SEGUNDO O CARTUNISTA HENFIL (1983-1984)
Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica HH067.Orientador: Professor Dr. Dennison de Oliveira.
CURITIBA
2010
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ÍNDICE
RESUMO 04
INTRODUÇÃO 05
1. A TRANSIÇÃO POLÍTICA – O LENTO FIM DA DITADURA 16
2. A CAMPANHA DAS DIRETAS-JÁ 25
3. A REPRESENTAÇÃO DA CAMPANHA NOS TRABALHOS DE HENFIL 35
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 54
REFERÊNCIAS 57
4
RESUMO
O fim da ditadura militar brasileira foi caracterizado por uma longa fase de transição do regime autoritário para a democracia. Este período foi marcado pela mobilização política, em torno da reivindicação de eleições diretas, em instancia municipal, estadual e federal. A campanha, que ficou conhecida como Diretas-Já, caracterizou-se pela participação popular em comícios organizados por entidades políticas partidárias e por representantes da sociedade civil. Um crítico ferrenho do regime autoritário, o cartunista Henrique de Souza Filho, conhecido como Henfil, acompanhou este processo de transição com um olhar atento. Participou ativamente dos comícios da campanha das Diretas e também dedicou parte de suas produções humorísticas do período, todas elas atreladas ao momento político, ao tema das eleições diretas para presidência da república. A análise desses trabalhos de Henfil enriquece as informações sobre o momento e principalmente sobre as questões internas da campanha.
Palavras-chave:diretas-já; humor; representações.
5
INTRODUÇÃO
Historicamente a maioria da população brasileira esteve distante das decisões políticas.
Em um momento da transição iniciado no final da década de 1970, em que se passava
lentamente do autoritarismo para a democracia, o povo foi às ruas representando a si mesmo,
no movimento considerado como o de maior participação popular da história brasileira. As
manifestações populares a favor de eleições diretas baseavam-se em discussões concretizadas
na emenda Dante de Oliveira, que estabeleceria eleições diretas para todos os cargos políticos
da república brasileira.
Para uma melhor compreensão do significado histórico dessas manifestações, a favor
de eleições diretas para presidência da “Nova República” brasileira, é necessário que se
analise algumas questões específicas da conjuntura do regime militar. Principalmente sobre as
discussões em torno da abertura política, ou seja, a saída ou sutil permanência dos militares
no poder durante toda a década de 1980.
O início da discussão sobre a abertura democrática ocorreu durante o governo Geisel
(1974-1979), quando se colocou em pauta a liberalização política. O general teve muitos
problemas com os oficiais da linha dura, pois estes eram contra a liberalização, pois
aumentava o risco de plena abertura democrática. 1 Ernesto Geisel tendo dificuldades em
estabelecer suas decisões internamente, utilizou-se de arma própria do regime autoritário – a
repressão, representada por demissões sem consulta ao alto comando das Forças Armadas.2
Foi neste clima que se iniciou a transição, após quatorze anos de regime autoritário, com
decisões sendo impostas, dentro e fora do governo e com um acúmulo cada vez maior de
poder.
Diversos estudiosos que analisaram o período de transição do regime autoritário para a
democracia representativa afirmam seu caráter de negociação conservadora. Francisco
Weffort chama atenção para a definição que o presidente Geisel atribuiu à transição:
“distensão lenta, gradual e segura”. 3 O cientista político não se limita a criticar a lentidão da
abertura, afirma que a mesma esteve totalmente tutelada e controlada pelos militares, além de
não atender aos interesses populares:
1 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.2 SKIDMORE, Thomas Op cit.3 GEISEL, E. citado por WEFFORT, Francisco. Por que democracia? In: STEPAN, Alfred (Org.) Democratizando o Brasil Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988 p. 502.
6
A transição, além de se achar sob o controle militar dos donos do regime, tem se limitado às elites. (...) Suspensão da censura à imprensa, restabelecimento do habeas-corpus, anistia, reorganização partidária, eleições diretas para os governos dos estados – tudo isso, por importante que seja, se define num plano jurídico-institucional. (...) as massas populares continuam quase tão marginalizadas quanto sempre estiveram desde 1964. 4
De fato, além de lenta, a transição política não cedeu espaço para nenhuma participação
popular efetiva.
Durante o governo Figueiredo aconteceram eventos importantes, sendo este o momento
no qual a oposição teve maior representatividade, principalmente a partir das eleições diretas
para os governos estaduais em 1982. Os governos dos estados atuavam com grande
dificuldade, pois o país passava pela pior recessão econômica desde 1930. 5 É neste período
que se insere o objeto de análise deste trabalho, a campanha por eleições diretas para
presidência da República, que representou a voz da sociedade civil e o “ressurgimento do
espírito cívico”. 6
O peso simbólico da democracia durante a fase de transição foi o eixo norteador da união
entre diversos grupos sociais heterogêneos, em torno de manifestações e reivindicações
comuns, também carregadas de simbolismo. Entre estas reivindicações destaca-se o direito ao
voto, pois o alcance popular da campanha, que exigia o direito da população eleger seus
representantes, levou a uma revisão de paradigma. O principal deles diz respeito à “apatia tão
decantada do ‘povo’ brasileiro em relação à política”7, que foi revisto e discutido
principalmente pela imprensa. Marcos Napolitano analisa a representação de povo através dos
veículos de imprensa, que cobriam os comícios, entre eles periódicos impressos e televisivos.
“Nas representações veiculadas pela imprensa, a categoria ‘POVO’ parecia adquirir uma dimensão real, corpórea e expressiva. Na praça pública estava o ‘POVO’ brasileiro, uno e múltiplo ao mesmo tempo.”8
A Diretas-Já superou todas as expectativas de participação popular, sendo que
mobilizou diversos setores da sociedade civil, organizados ou não9. Entre estes devem ser
destacados as frentes sindicais, os próprios partidos políticos recentemente criados ou
reorganizados, as comunidades de base da Igreja Católica e outros movimentos sociais de 4 WEFFORT, Francisco Op. cit. p. 502-503.5 Ib. Id.6 SKIDMORE, Thomas. Op cit. p. 4707 NAPOLITANO, Marcos. Representações Políticas no Movimento Diretas-Já In: Revista Brasileira de História São Paulo, v. 15, n. 29 . p. 208 8 Ib. Id. p. 2089 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p.207
7
base, como as associações de moradores.
Segundo o jornalista Ricardo Kotscho o aspecto que mais chamava atenção durante os
comícios era o protagonismo do povo, que se caracterizava simbolicamente como a força da
campanha: “quem decidiu mudar os rumos da Nação foi o próprio povo brasileiro”.10 Ao
longo de seu diário da campanha o jornalista analisa o aumento da popularização do
movimento, lembrando que o número de participantes aumentava a cada comício. A união dos
diferentes partidos e entidades de representação popular é destacada como o principal aspecto
da campanha. A idéia era de que não havia significativas contradições e que no comício todos
constituíam o povo, pois o grande desafio já teria “sido vencido: o de unir, novamente, sob a
mesma bandeira, acima de divergências várias, a classe política, os sindicatos e os mais
representativos segmentos da sociedade civil”.11
A maioria das reportagens de cobertura da campanha publicadas na Folha de S. Paulo
enfatiza o modo festivo dos comícios e principalmente o caráter ordeiro e pacífico dos
mesmos. Um exemplo significativo é o artigo que retrata o comício da Praça da Sé em São
Paulo, que reuniu em torno de 300 mil pessoas, no qual é destacada a tranqüilidade e o
aspecto festivo do evento. Este movimento caracterizou-se pela participação popular devido
aos comícios que foram concebidos e organizados por grupos políticos específicos, como o
PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) e o PT (Partido dos Trabalhadores),
mas que conseguiram reunir muitas pessoas, como trabalhadores do setor industrial, feirantes,
estudantes, artistas famosos, e militantes que representavam a esquerda radical, como o MR8
(Movimento Revolucionário oito de outubro).
Para melhor compreender esse movimento, que ficou conhecido como “Diretas-Já”,
propõem-se a utilização das charges e crônicas produzidas e publicadas pelo cartunista
Henrique de Souza Filho – o Henfil – sobre a Campanha. Esta ocorreu entre novembro de
1983 e abril de 1984, com esses grandes comícios organizados em diferentes cidades do país.
No entanto, as charges de Henfil que traziam a discussão das eleições diretas e da democracia
como ideal político, já estavam sendo produzidas desde meados da década de 1970, muito
antes da campanha ser formalizada na forma dos comícios. A pretensão deste estudo é
analisar como este cartunista representou o movimento das diretas em seus trabalhos, à época
publicados na revista IstoÉ.
Faz-se necessário esboçar algumas considerações sobre o perfil deste desenhista, que
visivelmente possuía um espírito crítico. Desde o início de sua carreira como cartunista,
10 KOTSCHO, Ricardo. Explode um novo Brasil: Diário da Campanha das Diretas São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.11 Ib. Id.
8
Henfil demonstrava forte influência de esquerda, e sempre teceu críticas políticas e sociais,
principalmente sobre as desigualdades. Seu posicionamento fica mais evidente com o
fechamento do regime militar e o surgimento do periódico Pasquim em 1969, que se
enquadrava na imprensa alternativa.
“Durante a ditadura, estes jornais foram de extrema importância, ao passo que eram uns dos raros canais, mesmo sob severa censura, pelo qual se expressavam as parcas vozes que se atreviam a questionar o regime”.12
Interessante observar que foi a ironia, o tom infantil, que possibilitou a Henfil escapar por
diversas vezes da censura. O escracho também é algo que chama atenção em relação ao seu
trabalho, pois se comparado a outros desenhistas do Pasquim, percebe-se que Henfil não
pretendia realizar um trabalho intelectualizado.
O posicionamento de esquerda é evidente nos seus desenhos, porém o próprio Henfil
em entrevista a Tárik de Souza afirma que seu ativismo é dissociado de uma fidelidade
ideológica. Para produzir era preciso estar engajado, porém sua militância não era partidária;
ao mesmo tempo em que fala de seu envolvimento direto com a criação do Partido dos
Trabalhadores, destaca sua independência ideológica.13
Henfil não teria apenas desenhado para a campanha e contribuído ideologicamente
através de suas produções, como também teria trabalhado ativamente nos comícios, inclusive
arrecadando fundos14 para a realização dos mesmos. Este é um dos principais fatores que
impulsionaram a produção de charges que traziam à tona o tema das eleições diretas, pois
para o cartunista era preciso estar engajado para poder desenvolver um bom trabalho. De
acordo com Henfil seu desenho surgia da necessidade que tinha em se expressar, além de
considerar a charge como jornalismo.15 Esta consideração aproxima-se do sentido próprio da
charge, que se assemelha à reportagem, por ser uma resposta aos acontecimentos mais
imediatos.
Analisando o contexto de produção das charges temos que as mesmas foram
publicadas na revista IstoÉ, para a qual Henfil trabalhou entre os anos de 1979 e 1984. Como
as charges possuíam publicação semanal e numa revista de grande circulação acredita-se que
em termos de divulgação e alcance do grande público essa parte do trabalho de Henfil,
produzido em prol das eleições diretas, tenha obtido significativa repercussão. Contudo, o
próprio desenhista lamenta a falta de popularidade de grande parte dos periódicos nos quais 12 MALTA, Márcio. Henfil o humor subversivo São Paulo: Editora Expressão Popular, 2008 p. 31.13HENFIL. Como se faz humor político. Depoimento a Tárik de Souza. Petrópolis: Vozes, 1984.14MALTA, Marcio. Op. cit.15HENFIL. Op. cit.
9
trabalhou, inclusive o Pasquim, pois lembra que os mesmos atingiam o público que podia
pagar por aquele produto: a classe média.
De acordo com Maria da Conceição Francisca Pires o cartunista recriou valores e
práticas sócio-culturais trazidos do cotidiano do senso comum, através de um vocabulário que
mistura aspectos infantis com termos populares. Contudo, apesar da familiarização causada,
os desenhos não ganharam popularização, pois os símbolos populares “ao serem apropriados
pela linguagem gráfica (...) passam a fazer parte de um jogo de sentidos metafóricos
partilhados pela classe média intelectualizada.”16
Segundo o cartunista Márcio Malta, Henfil foi o responsável pelo apelido do movimento, de
Diretas-Já, que intitulou os comícios. Em entrevista com o senador Teotônio Vilela, que
posteriormente tornou-se personagem símbolo da campanha, teria surgido o nome. Malta
assim descreve o surgimento da idéia:
“A idéia surgiu ao editar entrevista com o senador alagoano Teotônio Vilela feita para o jornal Pasquim. Como na hora de fechar a edição faltava uma frase de efeito para destaque, Henfil inventou o seguinte diálogo: – E aí Teotônio, diretas quando?
– Diretas Já.”17
Uma síntese biográfica faz-se importante para uma melhor compreensão da formação
política e engajamento deste cartunista com as questões sociais. Henrique de Souza Filho, o
Henriquinho, nasceu em Neves, Minas Gerais e descendia de famílias que haviam sofrido
com a seca. Cresceu em uma família grande e recebeu uma educação rigorosamente católica,
que vinha de sua mãe, Dona Maria, que acabou virando personagem com o qual Henfil
interlocutava através de crônicas.
O bom coração do pai e a religiosidade da mãe marcaram Henfil profundamente, o que
se percebe através de seus depoimentos sobre a vida familiar. Parte de sua infância foi vivida
em colégios religiosos, nos quais não se enquadrava por ser muito travesso e não demonstrar
muito interesse nos estudos, por isso seus conflitos internos entre o bem e o mal, entre o certo
e o errado, entre Deus e o Diabo vão lhe acompanhar até a morte. Henriquinho, como era
conhecido na infância, era uma criança levada, que via certas travessuras como pecados quase
que irreparáveis. Na sua cabeça os dogmas da Igreja não ficavam acomodados, sempre queria
entender melhor o que para ele não havia sido muito bem explicado.
16PIRES, M. C. F. Cultura e política nos quadrinhos de Henfil HISTÓRIA, São Paulo, v. 25, n. 2 p. 94-114, 2006.17 Ib. Id. p. 79.
10
A hemofilia foi uma questão muito forte na vida de Henrique, e que vai fazer com que
ele crie uma grande intimidade com a morte. Qualquer fato corriqueiro como arrancar um
dente ou levar um tombo, podia causar um terrível inchaço, principalmente no joelho, e até
mesmo sangramentos incontroláveis. Uma pedrinha, um degrau, uma poça d’água, tudo
poderia ser uma armadilha que provocaria um terrível acidente, por isso Henfil desenvolveu
uma capacidade de prestar minuciosamente atenção em tudo ao seu redor. Outro fator que
marca a personalidade de Henfil que vem desde essa época de infância é a pressa e o gosto
pela vida. Além de caminhar com a morte ao seu lado, Henriquinho tinha que aturar o
sofrimento de seus
irmãos Betinho e Chico Mário que possuíam a
mesma doença.
Observando os males causados pela hemofilia
que não permitia a normal coagulação de seu
sangue e de seus irmãos, Henriquinho sabia que
não ia viver muito tempo, sendo assim a vida
deveria ser vivida intensamente.
Em trabalho muito interessante sobre a vida de
Henfil, o jornalista e escritor, Dênis de Moraes,
enfatiza a influência da “Ação Católica” na vida
do desenhista. Este movimento, que ganhou força
a partir da década de 1950, tinha como base a
evangelização, bem como preocupações sociais,
caracterizando-se por cultivar uma religiosidade
politizada. Segundo o autor da biografia citada,
um dos traços mais marcantes da personalidade
de Henfil era sua independência em relação a
qualquer fidelidade ideológica. Quando
participava da JEC (Juventude Estudantil
Católica), criticava a organização, e mesmo em
tom de ironia, tecia críticas abertas aos seus
colegas.18 Foi no jornalzinho da JEC, chamado O
Resmungo que Henfil iniciou as publicações de seus desenhos, por isso tinha espaço no grupo
para expressar suas opiniões da maneira como melhor o fazia.
18 MORAES, Denis. O rebelde do traço: a vida de Henfil Rio de Janeiro: José Olympio, 1996 pp. 44-50
Cartum de Henfil que tráz três importantes personagens, o seres do sertão: Zeferido, Bode Orelana e a graúna (de baixo para cima)
11
Outra importante influência na formação política de Henrique de Souza Filho foi a
Ação Popular, movimento que teve seu irmão, Herbert de Souza, como um dos idealizadores
e fundadores. A Ação Popular, fundada em 1962, caracterizava-se por misturar os
fundamentos católicos aos ideais marxistas e defendia a união entre estudantes, operários e
camponeses para a viabilização do projeto revolucionário.19 As transformações sociais eram o
foco deste movimento; a denúncia das condições miseráveis em que vivia, e que infelizmente
ainda vive, grande parte da população brasileira, era o principal motor deste tipo de
organização. A luta política deveria estar centrada na melhoria de condições do povo e
principalmente no combate à fome.
Os personagens apresentados no cartum acima são os personagens do sertão,
representam a saga da miséria social. Henfil publicava no Jornal do Brasil, tirinhas que
levavam o nome do personagem Zeferino, que representava o jagunço que se revoltava contra
os políticos corruptos que desviam verbas do Nordeste.20 Completando a tríade criativa,
surgiram na mesma leva, o Bode Francisco Orelana, um intelectual provinciano, e a Graúna,
um dos personagens mais irônicos e radicais em suas opiniões, entre todos os que Henfil
criou. Essa “trinca do barulho (...) vivia se engalfinhando na utopia de superar as provações
do subdesenvolvimento”.21
Segundo Moraes, o inicio do trabalho como cartunista ocorreu por acaso, quando
trabalhava como revisor para o jornal Alterosa de Belo Horizonte; Henfil teria sido
convocado pelo chefe Roberto Drummond a desenhar, por considerar que o empregado
entendia mais de desenho do que de língua portuguesa. Drummond seria também o
responsável pelo nome artístico do cartunista, Henfil, este que a principio não agradou22 o
dono, foi o nome que anos mais tarde ficaria conhecido em todo o país.
Depois do fechamento do Alterosa, Henrique Souza trabalhou no Diário de Minas,
onde pela primeira vez tinha um compromisso com o cartum, e já nestes primeiros trabalhos
percebe-se traços marcantes de sua personalidade, como a necessidade do rompimento com os
valores religiosos.23 Em seguida, o cartunista fez muito sucesso com charges esportivas no
Jornal dos Sports, com os apelidos que criou para as torcidas do Atlético e do Cruzeiro, de
“os urubus” e “os refrigerados”, respectivamente.24 Moraes enfatiza a intenção política nesses
batizados e afirma que os urubus representavam a massa excluída e os refrigerados a
19 Ib. Id pp. 44-5520 MORAES, Dênis. Op. cit., p.145 21 Ib. Id., p.14222 MORAES, Dênis. Op. cit., pp. 50-5423 Ib. Id., p. 7524 MORAES, Dênis. Op. cit., p.77
12
burguesia mineira, análise que demonstra o quanto o humor de Henfil era político. Conseguia
introduzir política em suas charges esportivas, utilizando as diferenças sociais que haviam
entre as torcidas, e em suas próprias palavras, reproduzia uma espécie de luta de classes.
O sucesso das charges esportivas fez com que Henfil fosse convidado a trabalhar do
Rio de Janeiro, na sede do Jornal dos Sports, fato que abriu portas para mais dois jornais com
os quais passou a contribuir semanalmente, O sol e Cartum JS, este último editado por
Ziraldo25. Entre os anos de 1967 e 1968 começa a
trabalhar para o jornal O Cruzeiro e para o Correio da
Manhã, tendo participado por certo tempo também no
periódico O Paiz.26 Importante ressaltar que este período
coincide com o início de intenso fechamento do regime
militar, principalmente em relação aos meios de
comunicação. Sendo que com o Ato Institucional número
5, vários jornais que exerciam oposição declarada foram
fechados, como é o caso do jornal citado, O Paiz.
Uma das participações mais marcantes em periódicos,
sem dúvida, foi no semanário Pasquim, onde estava
acompanhado entre outros, por Jaguar, Sérgio Cabral,
Tarso de Castro e Ziraldo. Foi neste jornal que Henfil
teve finalmente liberdade para reavivar os Fradinhos,
personagens criados no início de sua carreira e que até o
momento teriam ficado engavetados. 27 Foi através destes
dois personagens que Henfil exorcizou toda uma criação
rigorosamente religiosa e moralista, pois os dois, o Fradinho
Baixinho e o Fradinho Cumprido, representavam a dualidade do ser humano. Segundo
Moraes essa dualidade seria na verdade um conflito de personalidade do próprio cartunista; de
um lado o Cumprido, careta, carola e conservador e de outro o Baixinho, revolucionário,
anarquista e utópico. Uma análise do nome atribuído ao Fradinho, de Cumprido,
complementa a interpretação, pois alude também a um cumpridor das regras sociais e dos
deveres religiosos.
Em 1976 a revista IstoÉ surge como alternativa à Veja, e Henfil aceita ocupar a última
página, iniciando sua colaboração em março de 1977, quando a revista passou de mensal para
25 Ib. Id., p. 9326 MORAES, Denis. Op. Cit., p. 9427 MORAES, Denis. Op. Cit., p. 104
Fradinho e Cumprido: suas peripécias foram publicadas no “Almanaque dos Fradinhos” em 1971, publicação que reuniu 135 histórias desses fradinhos.
13
semanal.28 Na IstoÉ desenhou e escreveu durante sete anos, tendo pela primeira vez a
experiência de expressar-se também através de palavras, terreno em que pouco se aventurava.
É possível perceber que a maioria das publicações eram divididas entre crônicas –
principalmente cartas à mãe – e charges ou cartuns. E, para quem não gostava muito de
escrever, por acreditar que com o traço as suas mensagens eram mais contundentes, Henfil
demonstrava uma habilidade sem igual em suas crônicas, no geral muito irônicas e divertidas.
Ao analisarmos as crônicas publicadas na IstoÉ, percebemos que o estilo predileto do autor é
o diálogo, pois quando não fala com sua mãe, sua principal interlocutora, dialoga diretamente
com o público em geral, ou seja, o povo brasileiro, ou com personagens políticos específicos.
Certa vez Henfil definiu-se como “a mão do povo que desenha”. Analisando suas
opiniões sobre o seu próprio trabalho percebe-se claramente uma preocupação de servir como
instrumento de comunicação popular, de denunciar, através de seus traços, as mazelas e
anseios da população. Todo o seu trabalho deve ser pensado através da ótica do engajamento,
pois o humor para ele possui sempre uma determinação política, afinal de contas estava
“dentro do bonde da história”.29 Henfil afirma, em entrevista a Tárik de Souza, que o seu
envolvimento com as questões políticas são essenciais para a sua produção. A própria
concepção da charge, que está ligada a acontecimentos muito recentes em relação à sua
produção, reforça esta ótica de análise.
É interessante observar que para este cartunista era importante produzir com
independência, os comentários e críticas que tecia sobre a política partidária eram espontâneos
e não tinham compromisso com panfletagem.30 Essa afirmação está relacionada com seu
envolvimento com o Partido dos Trabalhadores, pois apesar do vínculo com o partido nunca
admitiu qualquer tipo de restrição ao seu trabalho. Em sua preocupação de atingir seus leitores
está incluída a importância da parceria com os mesmos, que significa um grande respeito em
relação às opiniões do público. Por isso, atingir seu público não significava doutrinação
partidária ou ideológica, significava sim compartilhar sentimentos e emoções, daí a
importância de estar vivendo o momento, como Henfil mesmo afirmou:
Quando começaram aquelas manifestações no Rio de Janeiro, eu estava nas manifestações, passeata dos ‘Cem Mil’, com hemofilia e tudo, com medo de apanhar, eu estava lá. Quando começaram a reorganização dos partidos políticos, uma vida institucional não mais clandestina, eu tava junto (...) a chave para você fazer humor engajado é você estar engajado.31
28 Ib. Id., p. 23929 HENFIL. Como se faz humor político. Depoimento a Tárik de Souza Petrópolis: Vozes, 1984. p. 5630 Ib. Id., p. 4031 HENFIL. Op. Cit. p. 40
14
A importância da relação com o público está diretamente relacionada com a necessária
identificação que deve ser despertada nos leitores, para que qualquer trabalho publicado
periodicamente possa sobreviver na lógica do mercado editorial. Esta era uma questão
pensada e vivida por Henfil, que se preocupava tanto com a sua sobrevivência como
cartunista, quanto com a relação simbólica que pretendia criar com seus interlocutores. Não
importando se acontecesse em forma de crítica positiva ou negativa, qualquer resposta do
público era recebida com entusiasmo. Outra questão atrelada a esta, e percebida facilmente
por quem analisa os trabalhos do desenhista, é a preferência pela linguagem acessível.
Percebe-se que grande parte do público consumidor deste tipo de humor, fortemente atrelado
à política, é no geral a classe média, os estudantes e intelectuais. Contudo Henfil sempre teve
a preocupação de falar a língua do povo, mesmo que para tanto não tenha conseguido
ultrapassar as barreiras econômicas e culturais. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo,
o cartunista critica o vanguardismo artístico, por considerá-lo cópia de modelos estrangeiros,
afirma que
“(...) a gente tem que partir da cultura nacional e não copiar o que vem de fora. Com o povo brasileiro não se pode falar de coisas encucadas. Não adianta falar em aldeia global. Se você disser, ‘quem não se comunica se trumbica’, aí sim, eles entendem.”32
Esta proximidade com o popular, em suas formas e sentidos, fez parte da formação
social e humana, ou seja, das próprias vivências de Henfil. Maria da Conceição Francisca
Pires demonstra, através de depoimento do cartunista, o quanto a vivência na periferia de Belo
Horizonte, foi determinante para a sua formação política e também para a sua produção.
Henfil afirma que ter vivido no bairro Santa Efigênia, “foi o maior curso de sociologia” que
fez, pois não precisava aprender sobre o subdesenvolvimento com o Celso Furtado, sendo que
poderia vê-lo (o subdesenvolvimento) pessoalmente.33
Henfil considerava-se um jornalista, o único fato que o diferenciava seria a
possibilidade de comunicar os fatos através do humor, na verdade a única forma pela qual
conseguia expressar-se34. Não afirmava ter um compromisso com o humor35, o seu
comprometimento era político e jornalístico, o que pode ser sintetizado em suas charges, que
sempre trataram de fatos políticos imediatos, ou assuntos que de alguma forma estavam
32 HENFIL. Entrevista concedida ao O Estado de S. Paulo, publicada em 08 de outubro de 1971. Apud MORAES. Op.cit.33 PIRES, Maria da Conceição Francisca. Cultura e política nos quadrinhos de Henfil. História, São Paulo, v.25, n.2 p. 94-114, 2006.34 Ib. Id., p. 2235 Ib. Id., p. 22
16
1. A TRANSIÇÃO POLÍTICA – O LENTO FIM DA DITADURA
Analisar a conjuntura política da abertura democrática, que simboliza o fim do período
conhecido como Ditadura Militar, requer um retorno à discussão que perpassa o golpe, uma
vez que a “Revolução de 64” foi legitimada a partir da necessidade de restaurar a ordem e o
Estado de Direito. A ameaça comunista, representada pelo presidente João Goulart,
desestabilizou várias relações de poder entre as diversas instituições políticas, historicamente
consolidadas, como as forças armadas e as oligarquias regionais.
Na tentativa de redefinir um projeto nacional-estatista, Goulart iniciou o programa das
reformas de base. Entre elas estava a reforma agrária, reforma urbana, reforma bancária,
reforma tributária, reforma eleitoral, reforma universitária e reforma do estatuto do capital
estrangeiro.36 Entre os objetivos destas reformas destaca-se a universalização do voto, a
distribuição de terras e o atendimento das prioridades37 sociais do país. A tendência populista
de seu governo levou Goulart à frente de vários comícios na tentativa de conseguir apoio
popular, principalmente em relação a reforma agrária. Assim como aconteceram discussões e
mobilizações populares em torno das reformas de base, também ocorreu a mobilização dos
setores conservadores da sociedade, incluindo as instituições representativas que certamente
não aprovariam38 as reformas propostas pelo presidente.
As orientações esquerdistas do governo Goulart não agradavam os credores
internacionais e a economia estava comprometida por altos índices inflacionários.39 De acordo
com o historiador Thomas Skidmore, foi a explícita adesão de Goulart a esquerda que
facilitou o trabalho daqueles que contra ele conspiravam. Não houve resistência à operação,
uma vez que a mobilização popular era inconsistente; os golpistas, por sua vez, estavam
amplamente amparados, pois contavam com a participação não apenas de militares, como
também de vários setores da sociedade civil.40 Estes eram os setores mais conservadores do
país e incluíam as elites econômicas, mas também grande parte da classe média urbana.
Estavam todos preocupados com a grande ameaça comunista de distribuição de riquezas e de
poder e “nutriam um grande Medo de que viria um tempo de Desordem e Caos, marcado pela
subversão dos princípios e dos valores, inclusive dos religiosos”.41 Um exemplo claro desta
36 REIS Filho, Daniel Aarão. A ditadura militar no Brasil: uma incômoda memória. Disponível em <http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv148.htm> p.06.37 Id. Ib., pp. 05-0738 REIS Filho, Daniel Aarão. Op. Cit. p. 06 39 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.40 Id. Ib.41 REIS Filho, Daniel Aarão. Op. cit. p.07.
17
preocupação é a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, evento que reuniu milhares de
pessoas no Rio de Janeiro, manifestando-se contrárias às reformas de Jango.
A questão da legitimidade do regime foi uma preocupação constante dos militares,
pelo fato destes terem conseguido apoio de setores importantes da sociedade para derrubar o
presidente, e o poder efetivo ter sido exercido apenas pelas Forças Armadas. Os militares
pretendiam demonstrar que esta instituição era a única capaz de restabelecer a ordem no país,
sendo que a missão consistia em extinguir a subversão e a corrupção. Entre as instituições que
apoiaram o golpe militar podem ser destacadas como as mais influentes – quanto à opinião
pública – a Igreja e a imprensa. Contudo a maioria destes setores rapidamente desiludiu-se
com o governo42 devido ao fechamento do regime, com demonstrações claras de
autoritarismo.
O que ocorreu com a deposição de Jango não foi um golpe, segundo a tradição latino-
americana, pois o Comando Supremo falava em nome de uma revolução43, com a intenção de
explicar que as mudanças seriam profundas e consolidadas. A grande contradição desse
processo de tomada de poder, é que o mesmo foi legitimado em torno dos valores cristãos e
principalmente em nome da restauração da democracia no país. No intuito de conferir maior
legitimidade ao golpe, foi escolhido o nome do general Castelo Branco, pois este tinha
credibilidade entre seus colegas militares e também estava envolvido com o Instituto de
Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), organização formada por civis e militares, cujo papel foi
importante nas negociações que culminaram no golpe.44 Considerando as inúmeras medidas
arbitrárias impostas pelo governo de Castelo Branco (1964 a 1967), através dos primeiros atos
institucionais, que permitiram desde uma grande manipulação das leis eleitorais até o extremo
poder de fechamento do Congresso, percebe-se uma evidente crise de autoridade e
conseqüentemente de legitimidade do regime.
As políticas econômicas dos governos de Castelo Branco e Costa e Silva (1967-1969)
parecem ser uma resposta a esta crise, uma vez que analisando o período militar como um
todo, conclui-se que parte considerável da sustentação do regime esteve atrelada ao “milagre
econômico” (1968 -1973). Nos primeiros anos de governo, os militares conseguiram
reconquistar a confiança dos credores estrangeiros, principalmente os americanos, com o
Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, e estabelecer uma política de
controle inflacionário, que incluía o controle salarial pelo Ministério do Trabalho.45
42 SKIDMORE, Thomas. Op cit.43 REIS Filho, Daniel Aarão A ditadura militar no Brasil: uma incômoda memória. Disponível em http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv148.htm p. 0944 Id. Ib., p. 0945 SKIDMORE, Thomas. Op cit. Skidmore afirma que a política de controle dos salários de todo o país perdurou
18
Foi durante governo Médici (1969-1974) que ocorreu o mais visível e acirrado
fechamento do regime. E foi neste mesmo período que o país passou por um intenso
crescimento econômico. As políticas empreendidas pelo ministro da economia Delfim Neto
desencadearam o “boom econômico”, consistindo no trunfo dos militares, trazendo
legitimação junto à classe média – principalmente devido às linhas de crédito para a compra
de veículos – e também junto aos empresários, através dos incentivos tributários.46 São
visíveis os benefícios conquistados através da aceleração econômica, contudo, Skidmore
atenta para as inegáveis marcas da repressão e da desigualdade, destacando a crueldade
presente na distribuição desigual dos benefícios do crescimento.
Todo o desenvolvimento econômico vivido pelo país não conseguiu amenizar as
desigualdades sociais, as quais estavam sendo, inclusive, denunciadas por organismos
internacionais. Mesmo os programas sociais implantados pelo governo de Médici não
apresentaram resultados, como exemplo podem ser citados o Mobral – programa que visava à
erradicação do analfabetismo – e o Plano Nacional de Saúde.47
De qualquer forma, a legitimidade do governo autoritário, principalmente em relação à
classe média, foi construída através do bom desempenho econômico, de acordo com as
conclusões de Edmar Bacha e Pedro Malan. Em artigo sobre a evolução da dívida externa
brasileira de 1968 a 1982, os autores citados dividem o período em três fases: os anos do
milagre (68-73), o ajuste econômico (74-78) e por fim a fase crítica (1979-81). 48 A euforia do
crescimento econômico da primeira fase levou o governo a agir controversamente, o que teria
como conseqüência a grave crise econômica vivida a partir de 1981.49 A recessão foi agravada
ainda mais com a renegociação da dívida externa em 1982, que aumentou a dependência ao
capital estrangeiro. 50 O período que se inicia no governo Geisel e vai até o governo
Figueiredo é o de maior queda do crescimento econômico, sendo o período de 1980 a 1984 o
mais crítico.
A desaceleração da economia pode ser considerada a principal causa de descrédito da
sociedade em relação ao regime autoritário, sendo que a recessão econômica atinge os
trabalhadores, mas também afeta drasticamente os empresários de todo o país. É importante
recordar que a organização da economia e o apaziguamento das agitações políticas foram
até 1979, sendo que a decisão final de qualquer negociação de aumento salarial era responsabilidade das cortes trabalhistas. 46 Id. Ib. 47 REIS Filho, Daniel Aarão. Op. Cit. p. 1748 BACHA, Edmar; MALAN, Pedro. A dívida externa brasileira: do milagre ao fundo. In: STEPAN, Alfred (Org.) Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.49 Id. Ib50 BACHA, Edmar; MALAN, Pedro. Op. cit.
19
peças chave nos discursos legitimadores da tomada do poder pelos militares em 1964. Assim,
a volta da inflação e o início da recessão econômica desencadearam o desgaste de importante
apoio dado ao regime militar pelas elites econômicas e pela classe média.
O governo de Geisel (1974 a 1979) marca o início do longo processo de
redemocratização do Brasil. Processo esse que se arrastou por dez anos de lutas,
manifestações, negociações fechadas, resistências populares, desistências e conformismos.
Geisel tinha o apoio das oposições moderadas, que evitavam sempre o radicalismo e o
protesto, mas também sofria resistências, tanto por parte dos remanescentes da esquerda, que
apesar de dispersos ainda exerciam alguma influencia, como também de dentro das forças
armadas, de militares radicais, contrários à distensão.51 Manifestações de posturas radicais e
de intolerância em relação à democracia e à liberalização econômica, vindas de oficiais da
linha dura, alimentavam até mesmo a descrença na capacidade do presidente Geisel, em
conduzir este processo.52
Mesmo com as dificuldades apresentadas, a distensão ocorreria, e nas palavras do
próprio Geisel seria lenta, gradual, e por ser também segura ocorreria sim, mas com total
controle por parte do governo. Exemplos de ações neste sentido são a Lei Falcão, que acabava
com os debates eleitorais pela TV, poderoso instrumento das oposições, e o pacote de abril em
1977, conjunto de leis que cassou mandatos de líderes moderados e instituiu os senadores
biônicos eleitos de forma indireta.53
Segundo o historiador Daniel Aarão Reis Filho, o ano de 1979 é o mais apropriado
para situarmos o início do processo de extinção da ditadura militar, pois foi neste ano em que
foram revogados os atos institucionais e aprovada a lei da Anistia, que representou a volta ao
país de vários líderes de esquerda. A partir desses acontecimentos iniciou-se o processo de
transição, que durou até 1988 com a aprovação da Constituição Federal, e então “da ditadura
fez-se a democracia, como um parto sem dor, sem grandiloqüência, cordialmente,
brasileiramente.” 54 Apesar do destaque para o caráter conservador da abertura democrática é
importante citar alguns grupos sociais, que de alguma forma participaram do debate em torno
da redemocratização do país, mesmo que de forma pouco efetiva do ponto de vista das
decisões finais.
Apesar de existirem várias contradições dentro da Igreja Católica neste período,
principalmente no tocante ao que significaria o conceito de democracia dentro da estrutura
51 REIS Filho, Daniel Aarão. Op. cit. p. 20.52 SKIDMORE, Thomas. Op cit. p.34853 REIS Filho, Daniel Aarão. Op. Cit. p. 20. 54 REIS Filho, Daniel Aarão. Op.cit. p. 01.
20
eclesial, esta instituição possuía considerável legitimidade para falar em nome da sociedade
civil. 55 Nesta questão, qual seja, o papel da igreja no processo de redemocratização, devem
ser destacadas as Comunidades Eclesiais de Base, que tinham importante função política nas
periferias de todo o país. Foi através destas organizações que as questões políticas foram
levadas de maneira concreta para alguns setores da sociedade, que pela primeira vez
experimentavam o engajamento político. As principais preocupações destas comunidades era
a denúncia das desigualdades regionais (econômicas) e a defesa dos direitos humanos. 56
Outros movimentos populares tiveram importante representação na abertura política,
tendo participado ativamente nos comícios que reivindicavam eleições diretas no país. O
principal exemplo a ser citado são as associações de bairro, mesmo sendo estes organismos
localizados regionalmente, ou seja, organizados em um universo restrito de ação. Essas
organizações surgiam a partir de iniciativas geralmente isoladas de resolver os problemas
mais urgentes da população local. É necessário salientar a importância destas associações para
a consolidação da transição democrática, pois afirmam a vontade da sociedade civil, em geral
desorganizada, de participar das decisões políticas. As mudanças da cultura política, que
aconteceram ao longo dos anos 1970, possibilitaram o surgimento de novas concepções de
organização e mobilização populares, assim como o novo sindicalismo, agora mais combativo
e representado pelas greves do ABC.57
Scott Mainwaring ao analisar o movimento das associações de moradores a partir do
caso de Nova Iguaçu, destaca o caráter autônomo de grande parte destas associações. A partir
de 1974 os movimentos populares teriam ganhado força no Brasil, e na década de 1980, a
maioria das organizações preferiu não se associar a partidos políticos. A autonomia do
movimento era tanto em relação ao partidarismo quanto ao Estado. As lideranças destas
associações de moradores tinham a preocupação de incentivar a participação de um número
cada vez maior de pessoas58, sendo esta a principal contribuição deste tipo de movimento para
a democratização das relações sociais do país.
É importante salientar que o trabalho dessas associações de bairro, também conhecidas
como associações de moradores, geralmente era desenvolvido em conjunto com as
comunidades eclesiais de base da Igreja Católica. O foco destas organizações não era
55 DELLA CAVA, Ralph. A Igreja e a abertura, 1974-1985. In: STEPAN, Alfred (Org.) Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 56 Id. Ib.57 RODRIGUES, Alberto Tosi. Diretas Já – o grito preso na garganta. 1ª edição. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003. p. 1358MAINWARING, Scott. Os movimentos populares de base e a luta pela democracia: Nova Iguaçu. In: STEPAN, Alfred (Org.) Democratizando o Brasil Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.301.
21
necessariamente uma pedagogia política, mas sim a resolução dos problemas mais
emergenciais59 destas comunidades, no geral muito carentes de condições básicas de
sobrevivência. Contudo, não se pode descartar o importante aspecto da formação política, que
foi o que impulsionou pessoas comuns sem vínculos partidários ou militantes, a irem às ruas
reivindicarem seu direito ao voto. Apesar da participação popular ter sido efetiva, a derrota do
movimento – representada pela reprovação da emenda que garantiria as eleições diretas –
reforça a questão do total controle exercido pelo governo durante a transição.
Neste contexto de ressurgimento dos movimentos populares é que situamos a criação
do Partido dos Trabalhadores, entidade importante devido a sua atuação na mobilização
popular a favor de eleições diretas. A fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980,
representou a construção de uma instituição para a qual convergiram os movimentos sociais e
sindicais e da qual faziam parte intelectuais e militantes cristãos, preocupados com a
população menos favorecida.60
Outros aspectos desta questão podem ser analisados através das considerações de René
Armand Dreyfuss, que discorre sobre o reorganização das elites dirigentes em torno da
abertura política . A partir de algumas informações utilizadas em sua análise é possível
compreender com mais clareza os motivos que levaram ao insucesso da campanha popular
por eleições diretas no Brasil. Se de um lado havia a organização popular, reivindicando o
direito ao voto, partindo de setores organizados da sociedade civil, sejam estes partidos
políticos ou movimentos sociais, de outro haviam organizações de proprietários rurais e
empresários da indústria preocupadas em controlar o processo de abertura, que além de
inevitável também lhes interessava. Segundo Dreyfuss, a elite econômica do país via nas
eleições diretas uma possibilidade de eleger seus próprios representantes, como garantia de
seus direitos. Percebe-se que o cientista político analisa esta questão sob a ótica da luta de
classes, onde cada uma estaria preocupada com sua própria representação no sistema de
eleições. Contudo, um dos aspectos que chama atenção em sua análise é a diferença ou
desigualdade existente neste processo. Para compreender melhor estes argumentos é preciso
refletir sobre algumas características do Estado brasileiro.
O Brasil, ao deixar de ser oligárquico-imperial e passar a ser republicano não deixou
de ser coisa privada das elites, pois quando ocorreu a incorporação de grupos emergentes –
burguesia urbana – estes aderiram ao estilo de vida dos dirigentes anteriores.61 Infelizmente
não é difícil constatar que vários grupos e até mesmo famílias, ainda hoje, permanecem 59 Id. Ib., p. 275.60 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. cit. p. 13.61 DREYFUSS, René Armand. O jogo da Direita – Na nova República. Petrópolis: Vozes, 1988. p. 10.
22
vitaliciamente no poder através de acordos políticos e também de táticas, como o conhecido
coronelismo, ainda predominante nos interiores do Brasil. Na transição para a república, a
concepção de estado é apropriada pela associação política dirigente – estado militar,
administrativo, despótico e escravagista – mantendo-se as relações de servidão, e assim o
Estado funciona como legitimador de privilégios coletivos das classes dominantes.62 Como
entende o Estado em termos marxistas, Dreyfuss afirma que no âmbito popular não há ação
política organizada e, portanto, falta consciência de classe. O contrário ocorreria com a
Sociedade Política Armada, que entende sua unidade existencial e possui um conjunto de
deveres rígidos e bem definidos, podendo ser comparada com uma sociedade à parte.63
Pode-se afirmar, portanto, que a lentidão do processo de abertura deu condições para
que tanto os militares quanto os empresários organizassem suas bases políticas. Várias
organizações podem ser citadas como exemplos de grupos da elite que se empenharam em
eleger os seus próprios representantes. Entre esses podem ser citados a UDR (União
Democrática Ruralista), a União Sindical Independente, que combatia o comunismo, e a
União Brasileira de Empresários, todas criadas no ano de 1985.64 Em torno de toda a
organização político partidária ocorre, como é visto, uma intensa manipulação da opinião
pública. Dreyfuss analisa criteriosamente as ações de certos grupos políticos em relação à
opinião de massa, o ponto central das manipulações midiáticas era “induzir ao descrédito”65
de certos candidatos, sem entrar em conflito diretamente. Um exemplo claro desta questão é a
eleição de 1989, na qual o candidato eleito foi Fernando Collor de Mello, com claro apoio de
alguns veículos de comunicação de massa.
Atentando para a análise da dinâmica de controle da abertura política, por parte do
governo, percebe-se que existiu uma grande responsabilidade que recaía sobre o presidente
Figueiredo (1979 a 1985). Esta se referia ao nome de seu sucessor, que deveria fazer parte dos
grupos em torno do poder, e das articulações políticas necessárias para garantir o controle
desta sucessão. Com o início de uma mobilização popular a favor de eleições diretas, sobre a
qual o governo tentava demonstrar uma falsa despreocupação e o envio de uma proposta de
emenda constitucional, que estabelecia eleições diretas em todos os níveis, restava como
único trunfo do governo, o controle do colégio eleitoral. O entendimento de que o Colégio
Eleitoral era possivelmente o último instrumento que se mantinha sob o controle do governo,
leva a acreditar, então, que seria realmente muito difícil a aprovação das eleições diretas
62 Id. Ib., p. 12.63 DREYFUSS, René Armand. Op.cit. p.27.64 Id. Ib., p. 58-82.65 DREYFUSS, René Armand. Op. cit. p.101.
23
naquele momento. A emenda, que ficou conhecida como Emenda Dante de Oliveira, pois
levava o nome do deputado que escreveu o texto e o apresentou aos congressistas, representou
um consenso das oposições, em favor das eleições diretas já para o ano de 1984, e
desencadeou uma série de reações por parte do governo.
A primeira ameaça real ao controle exercido sobre o Colégio Eleitoral foi a eleição
para governos estaduais, a qual o governo acreditava ser possível manipular a seu favor. As
eleições de 1982 foram as primeiras eleições diretas, desde o golpe, na qual foram eleitos
governadores e também deputados e senadores. Foi a eleição com maior participação popular
aquele momento, onde os oposicionistas conseguiram muitos cargos na câmara, porém não
foram maioria no Congresso, tampouco no Colégio Eleitoral.66 Contudo, o aumento de
representatividade da oposição já representava uma ameaça à hegemonia do PDS (Partido
Democrático Social), partido do governo que ainda continuava sendo majoritário. O fim do
bipartidarismo, que permitiu o surgimento e a volta de alguns partidos, possibilitou um
aumento da diversidade na oposição.
Várias emendas constitucionais haviam sido decretadas para garantir a manutenção do
controle sobre o Colégio Eleitoral, por exemplo, a emenda constitucional n. 22 de 29 de junho
de 1982, que foi uma medida de prevenção que aumentava a representação do partido
majoritário, que na maioria dos Estados era o PDS.67 Como a eleição de governos estaduais
em 1982 aumentou a bancada oposicionista no Congresso, o governo decretou a emenda
citada, para que passassem a fazer parte do Colégio Eleitoral, além dos representantes do
Congresso, seis representantes do partido majoritário de cada Assembléia estadual.68
Lembrando que as eleições de 1982 foram as primeiras eleições para governos estaduais,
tendo portanto um grande número de eleitores, sendo que foram eleitos também deputados e
senadores. O grande objetivo da emenda constitucional n. 22 era neutralizar a oposição, que
crescia nos grandes centros urbanos, mas que nas regiões mais atrasadas do país, tinha pouca
representatividade, locais nos quais o PDS mantinha o controle.
O que se percebeu durante as discussões em torno de um possível sucessor, foi que os
diversos grupos ligados ao governo estavam medindo forças. Desta forma, caberia ao Colégio
Eleitoral apenas apreciar as decisões tomadas em reuniões fechadas destes grupos, todas sob a
coordenação do presidente Figueiredo.69 Mas esta não seria apenas mais uma sucessão
presidencial, pois vários setores da oposição ao governo, já começavam a pressionar em favor
66 SKIDIMORE, Thomas. Op. cit. p. 45067 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. cit. p. 16. 68 Id. Ib., p. 17.69 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. Cit. p. 18.
24
de ações que levassem ao fim do Colégio Eleitoral e que restabelecessem as eleições diretas
no país ainda em 1984.70
70 Id. Ib., p. 19.
25
2. A CAMPANHA DAS “DIRETAS-JÁ”
Ao reafirmar seu compromisso de estabelecer a democracia no país, o general
Figueiredo, logo depois de sua posse como presidente da república, teve como uma de suas
primeiras ações, entre outras, a distribuição das seguintes tarefas aos seus novos ministros:
“Murilo Macedo, do Trabalho, vai tentar hoje em São Paulo negociar o fim da greve dos metalúrgicos do ABC; (...) Petrônio Portela começa a redigir o decreto que suspenderá a censura às obras literárias, além de acelerar os estudos finais para a decretação da anistia; e Eduardo Portela vai ao Rio, na esperança de acabar com a greve dos professores cariocas.”71
Medidas importantes, como a anistia e o fim definitivo da censura, estavam sendo
encaminhadas, contudo a manutenção da ordem continuava sendo a preocupação central. O
novo presidente, em seu discurso de posse, além de destacar a democracia como um
propósito, também afirmou que estaria com a mão estendida para a conciliação72. O que
sintetiza sua postura durante toda a gestão, que se manteve na aceitação do diálogo com parte
da oposição, e também com seus próprios colegas de governo.
A organização política em torno das eleições diretas possuía várias frentes, entre elas
podem ser destacadas as negociações partidárias, o rearranjo das elites políticas, já
mencionado anteriormente, e também as manifestações de rua – os Comícios – que reuniram
vários setores da sociedade civil organizados. Os Comícios da Diretas-Já também atraíram
pessoas comuns, que até aquele momento não tinham uma participação direta e efetiva na
vida política do país. Estes aconteceram em várias capitais brasileiras entre elas, Curitiba, São
Paulo, Rio de Janeiro, Macapá, Teresina, São Luis, Belo Horizonte e Cuiabá.
A preferência da sociedade civil por eleições diretas estava cada vez mais clara, por
isso os partidos políticos sentiram-se pressionados a iniciar uma mobilização; e a primeira
reunião pública organizada pelo PMDB na cidade de Goiânia, em 15 de junho de 1983, teve
cerca de 5 mil participantes, número que surpreendeu os organizadores.73 Três dias depois foi
realizado em Teresina, um ato público pró-diretas, desta vez um evento suprapartidário
reunindo PT, PMDB, PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e PDT (Partido Democrático
Trabalhista), e que inclusive marcou a adesão de entidades civis como a OAB (Ordem dos 71 Publicado na Folha de S. Paulo, sexta-feira, 16 de março de 1979. Disponível em: http://bd.folha.uol.com.br/bdacervoonline.htm72 Id. Ib.73 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. Cit. p. 33.
26
Advogados do Brasil), a Confederação Nacional do Bispos do Brasil (CNBB) e a União
Nacional de Estudantes (UNE).74
O jornalista Ricardo Kotscho, em publicação sobre a campanha em forma de diário –
que reúne várias informações de cobertura dos comícios realizada para o jornal Folha de S.
Paulo – fala sobre a questão da imparcialidade do jornalista que sempre lhe foi ensinada.
Discorre sobre a dificuldade de exercer essa pretensa imparcialidade jornalística diante dos
fatos que estava vivendo desde o início da ditadura militar, pois o envolvimento emotivo com
os momentos políticos vividos era muito intenso.
O evento que marca o início das manifestações pró-diretas foi em frente ao Estádio do
Pacaembu, em São Paulo, e reuniu apenas 15 mil pessoas. Essa relativa impopularidade levou
algumas pessoas envolvidas na organização da campanha, que se iniciava, a desacreditar na
capacidade do povo brasileiro de se organizar75. Na mesma tarde deste primeiro comício, 27
de novembro de 1983, morreu o senador alagoano Teotônio Vilela, símbolo da campanha,
pelo seu envolvimento com a questão76. Henfil criou uma caricatura do senador, que no
imaginário da campanha tornou-se símbolo, pois traz o Teotônio, de bengala levantada. Esta
posição, segundo o cartunista, quer dizer: “Povo brasileiro, em pé pelo Brasil”. É destacada, já
nesta primeira festa-comício, a participação de partidos como o PT, PMDB e PDT, as
principais entidades de esquerda como a Central Única dos Trabalhadores e a União Nacional
de Estudantes, e ainda a participação do braço leigo da Igreja Católica, através da pastoral
universitária e operária, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e outras
entidades ligadas à defesa dos Direitos Humanos77. Esta manifestação representou um
reencontro da classe política com a sociedade civil em torno de um mesmo objetivo.
Um dos principais obstáculos a essa mobilização política, a favor das eleições diretas,
era claramente o presidenciável Paulo Maluf, que considerava a eleição direta um “mero
casuísmo contra sua candidatura”, que segundo ele era inevitável78. Em entrevista à folha de
São Paulo, o governador de São Paulo Franco Montoro fala com otimismo sobre as
possibilidades de eleições diretas e diz que os principais entraves são as questões pessoais e as
discussões em torno de nomes dos possíveis candidatos. É importante destacar as inúmeras
diferenças ideológicas que existiam entre os membros do Comitê das Diretas, pois mesmo o
objetivo sendo único, as estratégias de ação eram diferenciadas. O grande desafio do Comitê
74 Id. Ib., p. 31.75 KOTSCHO, R. Explode um novo Brasil: Diário da Campanha das Diretas São Paulo: Editora Brasiliense, 1984 p. 06.76 Id. Ib., p. 06.77 KOTSCHO, R. Op. Cit. p. 15.78 Id. Ib., p. 12.
27
era sintetizar essas estratégias, de uma forma que o movimento não adquirisse um caráter
partidário, ou pudesse ser deslegitimado por incongruências internas. Como exemplo, podem
ser citadas as diferenças entre a posição conciliadora do PMDB e a fúria ideológica do PC do
B.
O comício de Curitiba, que reuniu 50 mil pessoas fez a campanha renascer no início
do ano de 1984. O comício aconteceu no dia 12 de janeiro, na Boca Maldita e foi organizado
pelo PMDB e pelo governo do Paraná, sendo considerado o primeiro grande comício da
campanha79. O governador do Estado, José Richa, estava muito envolvido com a campanha e
teve sua participação ativa na organização do comício da capital paranaense, fato que
estimulou e chamou para a responsabilidade outros governadores. Depois deste comício o
governador de São Paulo, Franco Montoro, passou a empenhar-se pessoalmente na
organização do comício marcado para a capital paulista, e o governador do Rio de Janeiro,
Leonel Brizola, que até então acreditava, como solução à transição, em um mandato-tampão
para Figueiredo, marcou eventos para o estado do Rio e confirmou sua presença no comício
de São Paulo.80
Através de depoimentos de pessoas simples do meio da multidão, descritos ou
comentados pelo jornalista entrevistador, é possível constatar que todas as esperanças de
justiça e melhoria de vida estavam depositadas nesta possibilidade, de escolher os “próprios
representantes políticos”. Essas entrevistas foram feitas por Ricardo Kotscho, com pessoas
que participavam do Comício da Praça da Sé em São Paulo, ocorrido em 25 de janeiro de
1984. Importante salientar que este jornalista esteve em todos os comícios das Diretas, com a
missão de registrá-los e publicar ao menos uma nota no periódico Folha de S. Paulo.
O engajamento deste periódico deve ser destacado, pois foi um dos poucos, entre os
grandes veículos de comunicação, que apoiaram abertamente a campanha. O jornal, de
circulação nacional, cobriu todos os comícios da campanha e teceu várias críticas às
negociações organizadas pelo governo. Segundo Isabela D’Ávila Vieira, desde novembro de
1983, a Folha de S. Paulo demonstrou deliberada defesa da campanha, antes mesmo desta
adquirir alguma popularidade, o que aconteceria ao longo dos acontecimentos. Pode-se pensar
na hipótese de que o envolvimento da imprensa, representada aqui pela Folha de São Paulo,
estimulou a participação das pessoas nos comícios. O periódico não apenas noticiou os
comícios, após sua realização, como também convocou a população a participar dos
comícios.81
79 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. Cit. p. 42. 80 Id. Ib., p. 44.81 VIEIRA, Isabela D Avila. A hora e a vez do povo – Opinião e contra-agendamento nos casos do
28
É destacada a grande alegria presente neste comício, visível nos sorrisos das pessoas e
também na chuva de papel picado que caía dos prédios, anunciando o comício82. Interessante
a comparação que Kotscho faz entre as pessoas que participavam dos comícios, que indo para
suas casas pegando o metrô, pareciam torcedores, pois desfiavam todo tipo de palavrão contra
os políticos – segundo o jornalista palavrões impublicáveis – principalmente contra o
presidente Figueiredo.
Analisando algumas charges de Henfil é possível estabelecer comparações entre o
‘povo manifestante’ e o ‘povo torcedor’. Talvez para reforçar a idéia de unicidade, de uma
mobilização em torno de um mesmo objetivo, ou para simplesmente demonstrar, através da
representação gráfica, que o povo unido é forte e que torce pelo Brasil.
O Comício da Praça da Sé teve a participação não apenas de políticos como Lula,
Ulysses Guimarães e Franco Montoro, como também de artistas como Bruna Lombardi,
Carlos Vereza e Chico Buarque.83 Para se entender a dimensão organizacional deste evento,
em termos de divulgação, destaca-se que o comício contou com 5 milhões de folhetos, 200
mil cartazes e 600 outdoors.84 Até uma reportagem no Jornal Nacional foi conseguida através
de uma articulação do deputado Ulysses Guimarães, em reunião direta com Roberto Marinho,
apesar do ato ter sido incluído em reportagem que tratava da comemoração do aniversário da
cidade.85
O comportamento da Rede Globo em relação à campanha chama a atenção, pois foi de
total descaso em relação ao movimento. Este suposto boicote à campanha é destacado por
Isabela Vieira que afirma que
“embora a direção da Globo afirme que tenha dado atenção as manifestações populares, muitos estudiosos argumentam que a rede ignorou o apelo popular e só passou a dar espaço à campanha quando
o movimento já estava totalmente alastrado e era, portanto, impossível de ser ignorado.” 86
Em seu discurso neste dia, Montoro utiliza um jargão muito explorado por Henfil em
suas crônicas, “aqui estão presentes as esperanças de 130 milhões de brasileiros”. 87 Este
discurso reforça a idéia de que a maioria da população brasileira estava sendo representada
movimento Diretas-Já e dos atentados de 11 de março em Madri. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009.82 KOTSCHO, R. Op. Cit. p. 24.83 Id. Ib., p. 24.84 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. Cit. p. 45.85 Id. Ib., p. 47.86 VIEIRA, Isabela DÁvila. Op. cit. p. 5287 MONTORO, Franco. Em discurso no Comício da Praça da Sé em São Paulo. Apud: Kotscho, Ricardo. Op. Cit. p. 27.
29
nestes comícios, de que o grupo de pessoas reunidas nas ruas e praças das capitais brasileiras
estava representando a vontade de todo o povo brasileiro, principalmente os sofridos e
injustiçados. O direito ao voto representava, naquele momento, muito mais do que
simplesmente o enterro do regime autoritário, era a reconquista da cidadania, ou a
oportunidade de dar novo sentido a ela.
Interessante analisar a observação feita por Kotscho sobre a presença de Aureliano
Chaves, vice-presidente da república, na cidade de Teresina no dia do comício da campanha,
em 14 de fevereiro de 1984. Chaves estava iniciando discussões sobre sua candidatura à
presidência e quando chegou na cidade foi convidado pelo presidente do Comitê Estadual
Pró-Diretas do Piauí a participar do Comício; o
presidenciável teria dito que estava com a agenda lotada, mas
que estava na mesma luta.88 Cabe aqui observar que Henfil
dialogou várias vezes, através de crônicas, com o vice
Aureliano Chaves – em uma dessas crônicas diz que o mesmo
devia se entregar às diretas:
“Dr. Aureliano Chaves, de que lhe vale o apoio de um humorista? De que lhe vale o apoio de um mineiro sem tropas e sem curral eleitoral? Mas, ainda assim, insisto em que o senhor deveria me conquistar. O senhor nunca deu atenção pra mim. E eu sou tão fácil de agradar. O senhor certamente conheceu o Teotônio Vilela. Ele como o senhor era um proprietário de terras. (...) Assim como o senhor ele fez o golpe de 64. (...) Teotônio Brandão Vilela, (...) não ficaria conhecido como usineiro ou golpista. Escolheu o impossível: cortar suas próprias raízes autoritárias e virar um estadista. (...) O senhor sabe que é incompetente para jogar. Não tem a malícia das raposas e nem a capacidade de rastejar ligeirinho das cascavéis. E, mesmo que ganhe no colégio eleitoral, a tua paralisia moral continuará. (...) Sonhe o ideal, o gostoso, o feliz. Imagine um emocionado Osmar Santos anunciando pros 800 mil presentes ao próximo comício das diretas: e agora para encerrar, temos uma surpresa:AU-RE-LI-A-NO CHA-VES!!! Venha ser amado, venha ser letra de música, homem de Três Pontas.”89
O papel destes políticos importantes, que estavam diretamente ligados às decisões
políticas do país, era essencial para tornar o sonho das eleições diretas uma realidade. O
retorno a democracia já fazia parte da pauta de discussões do governo há alguns anos, porém a
pressão exercida por uma mobilização popular não agradava a maioria dos representantes
88 KOTSCHO,R. Op. Cit. p. 33.89 HENFIL. Diretas Já. Editora Record, 1984. A caricatura ao lado é a imagem de capa da publicação citada. A caricatura, desenhada por Henfil, é do senador alagoano Teotônio Vilela, que como anteriormente citado, tornou-se símbolo da campanha das diretas, sendo até mesmo reproduzida como balões gigantes em alguns comícios.
Essa caricatura, desenhada por Henfil, é do senador alagoano Teotônio Vilela, que como anteriormente citado, tornou-se símbolo da campanha das diretas, sendo até mesmo reproduzida como balões gigantes em alguns comícios.
30
políticos da nação. Portanto, apesar de admitida a inevitabilidade da abertura democrática
efetiva, o governo não deixaria o controle da situação tão facilmente. O foco fundamental do
movimento das diretas era a “sorte” da Emenda Dante de Oliveira, em trâmite no congresso, e
as possibilidades da campanha de rua, em constante crescimento, desde o início dos
comícios.90
Depois dos comícios de Curitiba e São Paulo, ocorridos em janeiro de 1984, o
governo, principalmente a ala militar, procurou viabilizar a sucessão e mobilizar-se para
derrotar a emenda Dante de Oliveira91. Apesar de tentar disfarçar perante a imprensa,
demonstrando um falso descaso, a campanha começava a preocupar seriamente o governo.
Em declaração publicada na revista IstoÉ, em 08 de fevereiro de 1984, o ministro da justiça
Ibrahim Abi-Ackel, declarou que não importava quantas pessoas fossem mobilizadas,
tampouco quantos artistas fossem contratados para divertir o público, nada iria mudar.92
O deputado que apresentou a emenda Dante de Oliveira ao Congresso não era um
político muito conhecido, e mesmo assim, com muito esforço, conseguiu coletar as 16o
assinaturas necessárias para a apresentação do texto no Congresso.93 Existiam outras emendas
que estavam já em tramitação, que traziam essencialmente a mesma proposta, de eleições
diretas, e que foram sintetizadas na Dante de Oliveira para facilitar a votação e possível
aprovação.94
Para se ter uma noção geral do número de participantes e das cidades onde ocorreram
os comícios, faremos uma breve síntese. Os comícios de Teresina, capital do Piauí, e de São
Luis do Maranhão reuniram em torno de 25 mil pessoas cada um.95 O comício realizado em
16 de fevereiro, na cidade de Macapá, capital do Amapá, reuniu cerca de 10 mil pessoas,
número que representa 10% da população local.96
Em Belém (Pará) 60 mil pessoas reuniram-se pelas diretas, em 17 de fevereiro, e o
foco dos discursos neste comício foi a reunião de Figueiredo em Brasília com os
presidenciáveis; em seu discurso neste dia, Doutel de Andrade, dizia que “... o regime
autoritário morreu. Quem o matou foi o povo na praça pública” 97. Interessante lembrar que
em outros comícios o regime foi simbolicamente enterrado, sendo confeccionados caixões
90RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. Cit. p. 39.91 Id. Ib., p. 41.92 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. cit. p. 50.93 Id. Ib., p. 42.94 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. Cit. p. 42.95 KOTSCHO, Ricardo. Op. Cit. p. 33.96 Id. Ib., p. 39.97 KOTSCHO, Ricardo. Op. Cit. p. 43. Doutel de Andrade era presidente do PDT e esteve presente em um número considerável de comícios.
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que representavam o regime. Destaque também para a música “Marcha das Diretas” do
compositor paraense Pinduca: “o povo está querendo/um Brasil em linhas retas/com eleições
diretas/diretas, diretas, diretas/queremos eleger o nosso presidente/pra frente Brasil, pra
frente”.98
O comício de Manaus, ocorrido em 19 de fevereiro, foi o primeiro grande fracasso da
campanha, segundo Ricardo Kotscho. Ele descreve este como sendo o momento mais
desorganizado, tumultuado e dividido, pois a executiva municipal do PMDB ordenou que as
faixas do PC do B, colocadas em volta do palanque, fossem destruídas, fato que causou um
enorme constrangimento e divisões dentre os membros do PMDB presentes neste comício,
que reuniu apenas 6 mil pessoas.99 Para o jornalista, as divergências das políticas regionais
eram o principal entrave para o sucesso do movimento. No mês de fevereiro ainda foram
realizados comícios nas cidades de Rio Branco, Cuiabá e Belo Horizonte, sendo que este
último deve ter reunido em torno de 300 mil pessoas.100
O governador Tancredo Neves participou diretamente da organização do comício de
Belo Horizonte, que ocorreu no dia 24 de fevereiro de 1984.101 Tancredo, que presidiu a
comissão suprapartidária de organização do comício, fez questão de resolver pessoalmente
alguns detalhes delicados que poderiam comprometer a unicidade do comício; para tanto,
determinou que o exército não faria a segurança do evento, e negociou com o PC do B para
que, desta vez, não dessem destaque às suas bandeiras vermelhas.102
Nos meses de março e abril foram realizadas várias manifestações pró-diretas pelas
ruas de várias cidades do Brasil. Entre estas manifestações destaca-se o comício realizado na
cidade de Porto Alegre103, onde se reuniram em torno de 200 mil pessoas. Através de uma
cronologia da campanha, publicada por Kotscho, é possível perceber que não foram apenas os
grandes eventos que mobilizaram as pessoas, mas principalmente pequenos ajuntamentos.
Estes foram, no entanto, constantes, durante todo o período da campanha, e organizados pelos
comitês regionais presentes não apenas nas capitais, como em várias cidades do interior,
fazendo com que o movimento atingisse uma parcela mais significativa da população do país.
Faz-se importante destacar o papel desses Comitês pró-diretas, organizados em
diferentes cidades do país, que reuniam entidades representativas da sociedade civil e também
98 Id. Ib., p. 43.99 KOTSCHO, Ricardo. Op. cit. p. 44.100 Id. Ib., p. 56.101 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. Cit. 2003 p. 55.102 Id. Ib., p. 55.103 KOTSCHO, Ricardo. Op. Cit. p. 100.
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partidos da oposição, contando algumas vezes com representantes de movimentos sociais.104
Outro destaque diz respeito ao carnaval de 1984, que acabou por consolidar o caráter de festa
da campanha das diretas, pois em várias cidades foram montados blocos das diretas,
demonstrando que o espaço da participação política pode ser estendido, ou confundido com o
da sociabilidade.105
Rodrigues analisa a questão da conquista da legitimidade da campanha a partir das
discussões e disputas a respeito do número de participantes dos comícios. É destacado o
caráter efêmero das Diretas, uma vez que este tipo de movimento, para se manter, precisa ser
capaz de ampliar-se, no sentido de que um grande Comício precisa ser sucedido de um outro
ainda maior, para que possa ser demonstrado o crescimento das adesões. 106 De fato, calcular
um número minimamente preciso de um evento de participação de massa é uma operação
difícil. A manipulação das informações sobre a participação popular na campanha era crucial
para que o projeto das diretas fosse considerado viável por atores políticos da oposição que
relutavam em comparecer às manifestações populares. A grande questão, que estava presente
nos discursos de todos os oradores da campanha por eleições diretas, estava atrelada ao poder.
Principalmente nos discursos dos líderes de esquerda, mas não apenas nestes, estava sendo
constantemente reafirmado o poder do povo, representado naquele momento por sua
capacidade de mobilização.
Toda a ideologia que encaminhava as ações dos partidos e movimentos de esquerda,
naquela conjuntura política, que estavam fortemente enraizadas nas teorias inspiradas no
marxismo, baseava-se na capacidade de tomada do poder pelo proletariado. Por mais que a
categoria utilizada na maioria dos discursos, seja a de “povo”, percebe-se que, mesmo sendo
pela via democrática – a eleição direta – existia a possibilidade de reverter o jogo.
Simbolicamente, o poder seria do povo, se não diretamente ao menos através da possibilidade
de escolher seus representantes, sendo que a grande esperança era de que seriam eleitos
representantes vindos da própria classe trabalhadora. Por isso os partidos de esquerda, naquele
momento exercendo verdadeira oposição, não admitiam possíveis acordos com o governo,
pois acreditavam na capacidade e nas possibilidades da mobilização popular.
O grande sucesso dos últimos comícios da campanha das diretas representa o aspecto
de vitória da mesma, apesar de seu objetivo não ter sido alcançado, como se sabe. A
grandiosidade do comício deixou a ala conservadora do governo preocupada com o
andamento da questão da sucessão, e o próprio presidente Figueiredo já se manifestava,
104 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op.cit. p. 55.105 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. Cit. p. 58.106 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. Cit. p. 60.
33
informalmente, a favor das eleições diretas para aquele ano.107 A condição econômica do país
continuava agravando-se, devido à maior recessão que o país já tinha visto e ainda não havia
sido solucionada. O meio empresarial e tecnocrático viam a conquista da estabilidade política
como essencial para a consolidação de um acordo sobre a dívida externa.108
Uma emenda alternativa foi apresentada ao Congresso, que seria aprovada
futuramente como Emenda Figueiredo. Esta foi apresenta pelo presidente em reunião com
ministros-chefes do Gabinete Civil e do Gabinete Militar e propunha eleições diretas para a
presidência da Republica, para ano de 1988. 109 Esta emenda precisava ser a mais atraente
possível para os parlamentares do PDS e dissidentes do partido, os alvos mais fáceis de serem
convencidos, apesar do governo já ter conquistado vários votos da oposição, principalmente
do PMDB. Rodrigues chama de “ampliação de recursos” o que o governo estava fazendo,
pois entre essas ações estavam as “medidas de emergência”, pacote de decretos que visavam
controlar melhor o processo de votação das possíveis emendas, e também reuniões
particulares do presidente com deputados pedessistas.110 O objetivo maior era pressionar os
parlamentares pedessistas, principalmente aqueles que já haviam manifestado ser a favor de
eleições diretas, para o ano de 1984. O resultado da votação, onde a Dante de Oliveira foi
rejeitada pelo Congresso, leva a crer que nestas negociações diretas com alguns políticos do
PDS, o presidente Figueiredo foi realmente “persuasivo”.
Dentre as medidas emergenciais decretadas pelo presidente estava a censura às
telecomunicações no tocante à cobertura das tramitações no Congresso Nacional de emendas
à Constituição brasileira, o que impedia a transmissão jornalística da votação de Emenda
Dante de Oliveira.111 Entre as medidas estava ainda a proibição de reuniões e concentrações
promovidas com a participação de entidades ilegais, não reconhecidas. 112
Esta foi claramente uma medida que visava conter ou impedir qualquer espécie de
manifestação de massa, que pudesse estar prevista e que pudesse comprometer o andamento
das atividades como o governo previa. Os atores políticos que atuavam do lado oposto, não se
intimidaram e marcaram um “barulhaço”, que ocorreu em várias cidades brasileiras no dia 25
de abril, dia da votação da Emenda. E mesmo após a derrota da Dante no Congresso, os
líderes do movimento por eleições diretas afirmavam a continuidade da luta, apesar de muitos
107 Id. Ib., p. 78.108Id. Ib., p. 42.109 Id. Ib., p. 85.110 Id. Ib., p. 89.111 Id. Ib., p. 91.112 Id. Ib., p. 91.
34
políticos da oposição não enxergarem outra alternativa, que não fosse a negociação.113
Foi realizado em Curitiba, no dia 25 de junho, um comício que reuniu 40 mil pessoas,
onde estavam presentes Richa, Montoro, Lula e Brizola114, demonstrando que o movimento
ressurgia, ou que seus líderes não recuariam. Uma última tentativa de manobra foi aplicada
pela oposição, utilizando o próprio texto da Emenda Figueiredo, porém o presidente ao tomar
conhecimento dessas intenções, retirou a emenda da pauta.115
113 Id. Ib., pp. 93-95.114 Id. Ib., p. 96.115 Id. Ib., p. 97.
35
3. A REPRESENTAÇÃO DA CAMPANHA NOS TRABALHOS DE HENFIL
Como serão utilizadas charges e cartuns nesta análise é necessário diferenciar estas
duas expressões gráficas de humor e também contextualizá-las como fontes históricas. As
expressões gráficas de humor são constituídas por caricaturas, charges e cartuns e podem ser
analisados como “instrumentos autorizados para uma compreensão histórica que contemple
múltiplos olhares e vozes sobre os acontecimentos vivenciados na densidade cotidiana”116. As
charges, especialmente, devem ser compreendidas levando em consideração seu caráter
militante, em uma relação humor-política. A charge está diretamente relacionada ao
jornalismo, sendo uma forma de interpretação jornalística onde o autor expressa sua opinião.
Esta característica opiniática pode contradizer a possível intenção de imparcialidade da
informação do jornalismo.117
Destacamos aqui o desafio de perceber o potencial das fontes iconográficas,
sobretudo das expressões gráficas de humor. De acordo com Michele Bete Petry as
caricaturas, charges e cartuns devem ser analisados através de metodologias específicas.
Percebe-se, que tais metodologias são apresentadas de maneira ainda experimental, mas que a
inexistência de um caminho metodológico pode empobrecer uma pesquisa com visível
potencial. As expressões gráficas de humor caracterizam-se como fontes texto-visuais, onde o
texto e a imagem complementam-se e não raro a imagem é independente quanto ao
significado.118
As expressões gráficas analisadas neste trabalho são desenhos de humor que se
caracterizam pela manifestação da linguagem caricatural. As principais formas dessa
manifestação são a caricatura pessoal, a charge e o cartum. A diferença entre estas três formas
de manifestação consiste principalmente em sua forma, podendo também estar em sua
intencionalidade. A caricatura pessoal consiste num retrato onde se utiliza do exagero para
destacar algum aspecto, geralmente físico, de uma pessoa.
A diferença da charge e do cartum em relação à caricatura é que ambos apresentam
uma situação. O cartum trata de situações genéricas e geralmente temas mais universais,
sendo, portanto, atemporal. Já a charge relata um fato dentro de um contexto histórico
específico, exigindo do leitor o conhecimento de determinadas atualidades políticas e 116 CAMPOS, Emerson Cesar. Narrativas históricas no tempo presente: a tradução cultural nas expressões gráficas de humor. In: Anais do II Encontro Nacional de Estudos da Imagem. Londrina, 2009.117 ARAGÃO, Octavio. Charges e política – o riso moldando um país. In: História, imagem e narrativas nº5, ano 3, setembro de 2007. Disponível em <http://www.historiaeimagem.com.br> – acesso em 15 de outubro de 2009. 118 PETRY, Michele Bete As expressões gráficas de humor na História: Uma metodologia de leitura para as fontes texto-visuais In: Anais do II Encontro Nacional de Estudos da Imagem. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2009.
36
culturais para que este possa entendê-la. Esta pode ser entendida “como uma manifestação
artística do presente, marcada por memórias instantâneas que carregam um discurso satírico,
não sobre um sujeito em particular ou uma situação singular, mas sobre ambos
combinados”.119 A charge trataria alguns assuntos cotidianos de forma ironizada, estes
assuntos partindo da esfera pública, podem alcançar algum significado chegando ao ambiente
privado, por sugerir posicionamentos.
Uma questão importante a ser considerada é a especificidade temporal da charge, que
se caracteriza pelo imediato. Na charge o discurso além de satírico possui uma dimensão de
tempo presente bem delimitada, pois ela é um produto do cotidiano120. Nem todas podem ser
consideradas documentos visuais, pois não raro apresentam textos que complementam sua
interpretação, onde a imagem sozinha não é totalmente entendida, e as duas linguagens é que
alcançam o sentido pretendido pelo autor da charge.121 Outro aspecto que não pode ser
esquecido na análise é o contexto de produção e a ligação entre a fonte e seus meios de
veiculação. Petry atenta para o cruzamento entre as fontes e os dados, onde o humor aparece
como o tom da mensagem que liga a produção da fonte à sua recepção imediata e também ao
historiador.
Para iniciar a análise propomos uma breve discussão sobre o papel da imprensa
jornalística que coloca no mercado um produto muito específico, qual seja a “mercadoria
política” 122, servindo muitas vezes como único instrumento que aproxima a maior parte da
sociedade das questões políticas. Segundo a historiadora Maria Helena Rolim Capelato, os
periódicos que se prestam como porta vozes de setores minoritários da sociedade contribuem
para a reconstituição dos movimentos sociais e também para romper com uma tradição da
imprensa de ser porta-voz das elites.
No caso específico do movimento que reivindicava a volta de eleições diretas no
Brasil, a análise de algumas coberturas jornalísticas demonstra que houve um engajamento
claro de alguns veículos de imprensa, de grande público. Porém este engajamento está
profundamente atrelado a questões políticas maiores, que envolviam o restabelecimento da
democracia e do Estado de Direito no país, o que notoriamente era do interesse de diversos
setores, inclusive das elites liberais, sobretudo o empresariado. Não queremos com isso
afirmar que periódicos, como a Folha de São Paulo, por exemplo, agiram somente em função
de interesses de grupos da elite econômica brasileira, mas também não podemos concordar 119 PETRY. Op. cit. 120 PETRY. Op. cit.121 PETRY. Op. cit.122 CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto (Coleção Repensando a História), 1988 p. 10
37
com a tentativa de legitimar este periódico como ‘porta-voz do povo’. O objetivo defendido
pela imprensa, de que expressa a vontade do povo, pode ser contestado, pois “as contradições
aí existentes geram conflitos que a idéia de povo oculta, porque sugere unidade”.123
A imprensa deve ser entendida como espaço de representação do real, e de momentos
particulares da realidade124, por isso utilizaremos algumas imagens de comícios da campanha
das Diretas, produzidos pelo jornal Folha de S. Paulo e também pela revista IstoÉ,
entendendo que estas imagens foram produzidas com determinado fim. É necessário
esclarecer que, como qualquer produção midiática, as imagens do movimento veiculadas
nesses periódicos também foram manipuladas, e por se tratar de fotografias, não são a
realidade, e sim uma representação possível dela. A questão que estará presente em todas as
produções desses veículos de imprensa, principalmente do período mais próximo ao da
votação da Emenda Dante de Oliveira, é a preocupação em legitimar o movimento
demonstrando sua força e grandiosidade através da grande adesão da população.
Outro aspecto a ser destacado, por estar visivelmente atrelado a questão da legitimação
do movimento perante o conjunto societário brasileiro, diz respeito a intenção de centralizar a
questão da vontade popular. Esta, contudo, apresenta-se sempre em conjunto com a ressalva
da importância do caráter ordeiro do povo. Um trecho de uma reportagem da Folha de S.
Paulo, que exemplifica esta preocupação, é sobre o comício da Praça da Sé:
“... o caráter grandioso da adesão popular e, principalmente, a ordem e paz exemplares que se verificaram nesse grande evento acabam por enterrar definitivamente a falsa tese de que o povo reunido é sinônimo de desordem. O transcurso civilizado e pacífico do comício é a melhor resposta que a multidão organizada poderia oferecer àqueles setores minoritários que ainda teimam em negar participação popular nas grandes decisões nacionais. Nessa perspectiva, cabe sobretudo ao Congresso dar à sociedade brasileira uma resposta à altura do apoio que esta, com espírito desarmado e convicção inabalável, lhe oferece desde a praça pública.”125
Segundo Capelato, a “insistência na índole pacífica do povo brasileiro”126 pode ser
observada nos noticiários sobre a abolição e também sobre a Proclamação da República,
demonstrando que este discurso sempre esteve presente na imprensa brasileira, mesmo em
momentos em que houve uma relativa independência em relação ao poder central do Estado.
Analisando a imprensa de fins do século XIX, a autora demonstra que os mesmos grupos que
enalteceram a nova república em 1889, também o fizeram em relação ao Estado Novo, ou a
123 Ibid p. 71124 CAPELATO, Op. cit. pp. 24-25125 Disponível em: http://bd.folha.uol.com.br/bdacervoonline.htm126 CAPELATO, op. cit. p 45
38
“república nova” no ano de 1930.127 Os discursos jornalísticos, nos dois momentos históricos
citados, legitimaram os novos poderes afirmando o surgimento de um novo tempo, onde tudo
será novo e o futuro será diferente e melhor. Uma parte significativa da imprensa brasileira
apoiou o golpe de 1964, em nome da democracia e pela tranqüilidade de ver desaparecer a
ameaça comunista, mas essa mesma imprensa viu-se cercada e até mesmo punida pelo poder
dos militares.128 Já durante a campanha por eleições diretas, a maioria dos jornais optou pela
cautela, pois a transição moderada estava mais em consonância com o espírito do povo
brasileiro.129
A reportagem da Folha sobre o comício da Praça da Sé, que se divulgou ter alcançado
o número de 300 mil pessoas, tem um tom poético e emocionado. Além do envolvimento dos
repórteres que estavam cobrindo os comícios, percebemos também que existe um tom
legitimador, incluído como colaboração da imprensa à campanha. Além do caráter ordeiro e
pacífico que é lembrado nesta reportagem, foi dado ênfase ao clima de festa, de comunhão,
entre as pessoas que participavam e também entre as entidades presentes, que eram
visivelmente heterogêneas do ponto de vista político-ideológico. A categoria POVO aparece
como protagonista: “O povo acabou sendo o melhor desta grande festa, colorida,
descontraída, emocionante, sem incidentes, como São Paulo talvez jamais tenha visto em toda
a sua história, de 430 anos” 130.
Não podemos excluir as produções de Henfil destas questões, uma vez que o seu
trabalho estava sendo veiculado pela grande imprensa, neste momento. Este aspecto de festa
dos comícios era algo muito valorizado por Henfil, como um elemento que realmente faz
parte do caráter dos brasileiros. Esta visão é extremamente generalizante, sem dúvida, porém
apresentava-se naquele momento, para a campanha das diretas, como um dos elementos
agregadores imprescindíveis à sobrevivência da mesma. Apesar de entender os pormenores
institucionais e políticos, e manter uma postura minimamente condizente com a visão
apresentada pela IstoÉ, Henfil consegue exprimir suas opiniões sobre o processo de abertura
democrática e sua visão sobre o movimento de maneira bem particularizada, chegando
inclusive a contradizer algumas opiniões expressas na revista na qual trabalhava. Esta postura
demonstra a relativa independência com a qual o chargista trabalhava.
Um trabalho, publicado na revista, que exemplifica esta questão é uma crônica
publicada em quatro de abril de 1984, que critica severamente a maioria dos políticos da
127 Ibid pp. 45-48128 Ibid pp. 53-54129 Ibid pp. 56130 Folha de S. Paulo. Edição de 26 de janeiro de 1984
39
oposição, envolvidos na organização de grandes comícios. A crítica concentra-se nas
negociações de alguns políticos com o governo, em torno da questão da eleição, das quais o
POVO ficaria alheio. Para Henfil era um grande desrespeito com toda a pureza da vontade do
povo em mudar o país, o fato de acontecerem negociações entre o governo e alguns políticos
da oposição, em paralelo aos vários comícios com imensa participação popular. A visão de
Henfil é exposta nessa crônica, pois afirma sua vontade de ‘descer do palanque’. Conta que no
último comício ocorrido tinha descido do palanque e ido tomar chuva junto com todas as
pessoas ali presentes. A grande crítica tecida por ele é em relação à falta de igualdade dos
políticos, que falam de cima do palanque, em relação àqueles que estavam no comício. Critica
a superioridade dos que falam ‘em nome do povo’, principalmente devido às negociações a
portas fechadas, empreendidas por políticos que pretendiam manter-se no poder a qualquer
custo:
131
O trecho da crônica que traz a frase de ordem “voltem para casa” nos remete a um
cartum de Henfil, publicado em 13 de abril de 1983. Este cartum é significativo, pois
demonstra a presença da temática do protesto popular nos trabalhos do cartunista. O cartum
apresentado não faz parte da baliza temporal inicialmente proposta para esta pesquisa. Porém
como foram encontradas algumas crônicas que dão pinceladas sobre o tema de eleições
diretas, desde o ano de 1979, algumas produções anteriores ao período da campanha também
foram analisadas. Esta produção, contudo, não traz especificamente o tema das diretas, mas
131 Imagem digitalizada da revista IstoÉ, edição de 04 de abril de 1984. Acervo: Divisão de Periódicos da Biblioteca Pública do Paraná.
40
trata diretamente de uma mobilização popular, que se apresenta de forma desorganizada.
132
Mais do que desorganização é possível perceber que o povo retratado no cartum está
completamente sem referência política, sem lideranças, e também está padecendo, passa fome,
está desabrigado. Resumindo, o governo não sabe o que fazer com este povo: o personagem que
representa o governo, o Estado, faz várias tentativas tentando livrar-se do povo, tentando
desfazer a mobilização. Comunica-se através de um megafone, e ordena do alto de uma espécie
de palanque, que eles voltem ao se trabalho, às suas casas, aos seus partidos, aos seus líderes.
Porém este POVO está totalmente órfão, não tem para onde ir e com quem contar. Um aspecto
que chama atenção quando analisamos estas imagens é a representação deste povo, que se
caracteriza principalmente por sua expressão, e assim no singular mesmo, uma vez que aquele é
apresentado com grande homogeneidade, como algo único. A expressão destes personagens, que
representam a massa excluída, é de zanga, de desagrado. Percebe-se claramente que a intenção
132 HENFIL. Diretas Já. Rio de Janeiro: Editora Record, 1984.
41
do cartunista é estimular a participação popular na política, pois este, independente de fazer parte
de um partido, entidade ou movimento social organizado, deve exercer o direito da
reivindicação.
Podemos comparar este cartum com a charge a seguir, que traz a representação bem definida de
um comício da campanha das diretas. Nesta representação, o povo também é posto de maneira
caricata, e há outra caricatura, a de um militar. Desta vez este representante do governo, também
utiliza um megafone, porém a disposição dos personagens demonstra o quanto o ‘povo’ está
fortalecido, pois o militar que tenta conter a manifestação está no chão, no mesmo nível, a se
analisarmos os planos da imagem, está abaixo dos manifestantes.
133
133 Imagem digitalizada da IstoÉ, edição de 24 de fevereiro de 1984. Acervo: Divisão de Periódicos da Biblioteca Pública do Paraná.
42
Esta charge traz vários elementos visivelmente simbólicos da campanha das Diretas,
uma vez que o movimento, a esta data, já estava consolidado. Percebe-se nesta charge uma
crítica à postura do governo em relação à campanha. O principal destes elementos simbólicos
são as bandeiras, que trazem alguns chavões da campanha. Entre essas bandeiras estão
presentes as que fazem alusão às torcidas organizadas do Flamengo e do Corinthians, as
maiores do país, os seus dizeres fundem as torcidas ao tema das diretas. Uma das bandeiras
lembra o senador alagoano, Teotônio Vilela, e também existem algumas bandeiras em branco,
que hipoteticamente representam as várias entidades, partidos, movimentos sociais envolvidos
no movimento. Essas bandeiras, sem nenhuma inscrição, também podem representar outras
tantas reivindicações que o povo brasileiro poderia apresentar naquele momento.
Além de trazer a caricatura de povo, que é homogêneo e possui traços muito simples,
também traz a caricatura de um militar, que aos berros realizada uma tentativa de mandar o
povo para casa. Esta figura está fardada, e também está portando um conhecido instrumento
de contenção de ameaças urbanas: o cassetete.
As palavras proferidas por este oficial representam ironicamente o quanto o discurso
do governo estava desgastado, com a intenção de demonstrar a ilegitimidade do colégio
eleitoral. A ilegalidade de qualquer manifestação popular fica muito clara na fala do ministro
da justiça, Ibraim Abi-Ackel, que afirmou que “não importa quantas as pessoas mobilizadas,
sejam quantos forem os artistas contratados para divertir o público, não vai mudar nada” 134. A
declaração do representante do governo, proferida para a imprensa, afirma que, por mais que
tentasse, o povo não teria força política suficiente para ir contra os interesses do grupo
134 IstoÉ 01 de fevereiro de 1984, em reportagem referente ao comício da Praça da Sé ocorrido em 25 de janeiro.
43
dirigente do país.
Já a representação caricata do povo é muito interessante nesta charge, pois estas
pessoas, além de serem muito parecidas umas com as outras, também estão em número muito
grande, o que pode ser concluído analisando o alto da imagem onde as pessoas se confundem
com rabiscos. A representação das pessoas é gradativa, pois aquelas que estão na primeira fila
têm rostos, possuem expressão, as seguintes tem apenas traços de olhos e as próximas
resumem-se em círculos, para finalmente acabarem em rabiscos. Podemos comparar com uma
foto retirada da reportagem publicada na IstoÉ, em primeiro de fevereiro de 1984, que trata do
comício ocorrido em 25 de janeiro na Praça da Sé em São Paulo, onde a tomada da fotografia
produz o mesmo efeito, de horizonte, de infinito:
135
Importante comparar com uma foto publicada na Folha de São Paulo, pois esta se aproxima
muito com a da revista IstoÉ, e corresponde ao mesmo comício:
135 Imagem digitalizada da IstoÉ, edição de 01 de fevereiro de 1984. Acervo: Divisão de Periódicos da Biblioteca Pública do Paraná.
44
136
Estas imagens remetem a idéia de multidão, não importando nestas representações o número
exato de pessoas presentes. Estas fotos publicadas em reportagens de cobertura do comício da
Praça da Sé, enfatizam a adesão popular, consolidada neste evento, que foi considerado o de
maior participação até aquele momento.
Henfil, assim como as reportagens da IstoÉ, passa a dar mais destaque para os
comícios a partir de janeiro de 1984. Interessante observar que a representação feita pelo
cartunista de um grande comício, e também destacando o papel do futebol num contexto de
protesto é feita antes do comício da Praça da Sé, considerando apenas os preparativos do
comício. A charge apresentada acima foi publicada em 25 de janeiro de 1984; o comício da Sé
foi realizado neste mesmo dia e a foto analisada em comparação à charge, como trata do
comício citado, foi publicada em reportagem de 01 de fevereiro de 1984. Pela primeira vez há
uma grande repercussão de um comício na mídia, desde o início da campanha, em novembro
de 1983. Acredita-se que a maioria dos veículos de comunicação estava mantendo-se
cautelosa em relação à campanha das diretas, mas depois deste comício até a Rede Globo viu-
se obrigada a anunciar alguma nota. Mesmo que tenha sido incluído nas comemorações do
aniversário da cidade, o que foi claramente criticado pelos colegas jornalistas de outros meios
de comunicação, foi a primeira vez que a imagem de um comício apareceu no Jornal
Nacional.
Henfil está sempre à frente, sua visão antecede os próprios comícios, pois ele tem apenas um
compromisso, que é o de demonstrar a força do povo, na qual ele acredita. As próximas
136 Esta foto foi retirada do site: www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/album/)
45
charges que serão apresentadas demonstram explicitamente esta força, que infelizmente,
como demonstram os acontecimentos posteriores, acaba ficando no campo simbólico.
Contudo a re-significação do papel da sociedade civil, que passa a assumir o seu papel na
política através da manifestação popular, deixa vestígios na história política brasileira, que
permitem que alguns esses conceitos sejam novamente apropriados. Utilizando as
considerações de Marcos Napolitano sobre os simbolismos do movimento das diretas,
“Arriscamos dizer que as Diretas-Já, se tornaram a referência histórica para as posteriores mobilizações da sociedade civil, vividas na campanha presidencial de 1989, na campanha do impeachment em 1992 e na recente Ação da Cidadania contra a Fome e Pela Vida. Em todos esses momentos, as representações simbólicas, a confluência da festa e da política, as mesmas entidades sociais, a mesma linguagem dos direitos, serviu para a expressão política”137
A charge a seguir é uma das mais irônicas de todas as encontradas no período
analisado e foi publicada em 11 de abril de 1984, um período já bem próximo ao da votação
da Emenda Dante de Oliveira:
137 NAPOLITANO, Marcos. Representações Políticas no Movimento Diretas-Já In: Revista Brasileira de História São Paulo, v. 15, n. 29.
46
138
Esta apresenta uma caricatura de um político que pode representar a oposição
moderada e supostamente até mesmo o presidente Figueiredo, pois a figura é muito semelhante a
outras caricaturas do mesmo. Enfim, esta personagem encontra-se em uma situação muito
complicada, em que não consegue conter uma manifestação por eleições diretas. A hipótese que
seja um dos políticos que representam a oposição moderada, sobretudo do PMDB é a que será
considerada, pois assim a charge pode ser interpretada de forma mais completa. Os políticos da
oposição mobilizaram a população fazendo com que esta acreditasse em sua própria força, e a
idéia que Henfil traz nesta seqüência é a de que depois de ter sido estimulado e organizado,
ninguém conseguiria mais conter o povo. Primeiramente o político, reconhecido pelo uso da
gravata, está desesperado com a multidão, em seguida tenta conter o povo através da autoridade,
138 Imagem digitalizada da revista IstoÉ, acervo: Divisão de Periódicos da Biblioteca Pública do Paraná.
47
com as palavras de ordem “Subam a rampa”, depois clama pela ajuda de Lula, o líder nato,
verdadeiro (na opinião expressa pelo desenhista) e por último apela para o discurso. Henfil deixa
o sentido da charge em aberto, sendo que fica a hipótese do discurso, do qual não conhecemos o
conteúdo, ter sido eficaz ou não.
Continuando com a hipótese interpretativa apresentada, podemos pensar, pela data da
charge, que Henfil sugere um arrependimento de alguns políticos em relação ao próprio
movimento das diretas. Na verdade este arrependimento estaria atrelado ao fato de que alguns
políticos, ao perceberem que as eleições diretas não seriam aprovadas, tentaram desarticular o
movimento nas últimas semanas anteriores à votação. Além disso, existe a possibilidade desses
mesmos políticos terem negociado com o governo. Ficariam assim comprometidos em votar
contra a Emenda Dante de Oliveira, mas teriam a garantia de permanência no poder, com a
continuidade provável do Colégio Eleitoral.
Não se pode esquecer o peso que o caráter negociador tem no processo de abertura,
que segundo o sociólogo René Armand Dreyfuss constitui-se como uma negociação entre os
grupos da elite dominante, civis e militares. A partir das diversas considerações feitas por este
autor, sobre o processo eleitoral de 1986, é possível concluir que a abertura política, e
principalmente a aprovação das eleições diretas em todos os níveis do poder público, foram
impulsionadas não pela sociedade civil organizada em forma de manifestações públicas, mas
principalmente pela união das elites dirigentes, representada principalmente pelos proprietários
rurais e empresários da indústria. A lentidão da transição é justificada pelo fato desses grupos, e
inclusive as próprias instituições militares, terem a necessidade de reorganizarem-se
politicamente. O processo foi acelerado, portanto, no momento em que esse rearranjo já estava
concluído, e estes grupos, podendo eleger seus representantes, teriam seus interesses garantidos
burocraticamente.139 Contudo, a participação da sociedade civil no processo de transição, ainda
que tenha permanecido num campo simbólico, ocorreu efetivamente, através das manifestações
públicas.
Interessante observar que esta edição da IstoÉ, de 11 de abril de 1984, traz uma
reportagem com o seguinte título: “Quebra de Recordes – presença em comícios supera todas as
marcas”. A reportagem anuncia o crescimento da campanha, que se tornou “a maior
manifestação política da história recente do Brasil”, apresenta números da presença em comícios
ocorridos em várias cidades que não as capitais140. Os comícios das capitais foram mais
noticiados e mais explorados nas outras reportagens desde janeiro de 1984. Assim é possível
139 DREYFUSS, René Armand. O jogo da direita – Na Nova República. Petrópolis: Vozes, 1989140 IstoÉ, 11 de abril de 1984
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analisar mais um aspecto da charge, que representa o movimento ‘com o povo no comando’. Os
comícios aconteceram em várias cidades do país, sendo organizados pelos diretórios regionais e
pelas entidades de base, e mesmo não tendo a característica de grande comício com a presença
dos líderes partidários, tiveram uma adesão significativa.
Um fato que representa o caráter de negociação que a campanha também possuía é o
relato da entrega de um dossiê sobre a campanha das eleições diretas em São Paulo. Este dossiê
foi entregue pelo governador Franco Montoro aos presidentes do Senado Moacir Dalla e da
Câmara Federal, Flávio Marcílio, como forma de legitimar a emenda Dante de Oliveira.141
Montoro afirmou em entrevista à Folha de São Paulo (04 de fevereiro de 1984) que era preciso
reafirmar o caráter suprapartidário da campanha, e também de interesses coletivos, sem
personalismos ou citações de pré-candidatos. Em mesma entrevista, Montoro demonstra
preocupação com a possível continuidade dos comícios, que segundo o governador, deveriam ser
muito bem organizados para que mantenham seu caráter de “ordeiro e pacífico”.142
O cientista político, Alberto Tosi Rodrigues, ao analisar o papel exercido pelos
governadores da oposição durante a campanha das diretas, critica a posição do governador de
São Paulo Franco Montoro. Afirma que o governador não escolheu uma posição, pois em alguns
momentos apoiou abertamente a campanha – tendo inclusive participado de alguns comícios – e
em outros preferiu defender e agir pela via da negociação143, conforme informação citada acima.
A charge a seguir foi selecionada por canalizar todo o processo da campanha das
diretas, uma vez que representa todo potencial do movimento, demonstrado pelo Comício
ocorrido na Candelária em 10 de abril de 1984:
141 KOTSCHO, Ricardo. Op. Cit. pp. 30-31.142 Id. Ib., pp. 30-31.143 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. Cit. p. 32.
49
144
Esta charge representa um momento mais significativo do que outros, pois foi
publicada em 18 de abril, uma semana antes da votação da Dante de Oliveira e também após o
comício de 10 de abril, ocorrido em frente à Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro. Este
comício foi noticiado como o mais grandioso de todos os comício ocorridos até aquele
144 Imagem digitalizada da revista IstoÉ, edição de 18 de abril de 1984. Acervo: Divisão de Periódicos da Biblioteca Pública do Paraná.
50
momento, e seria o último antes da votação. A reportagem de capa da revista IstoÉ -
“DIRETAS! O DIA EM QUE O PAÍS FALOU” – traz informações de outros veículos de
comunicação sobre o número calculado de pessoas presentes neste comício:
“A polícia federal calculou em 500 mil, o jornal do Brasil anunciou 800 mil e a Folha de S. Paulo acredita que 1 milhão de pessoas teriam comparecido à avenida Getulio Vargas e arredores para assistir ao comício das diretas”145.
A enorme reportagem, com cerca de dez páginas, apresentou todos os nomes e das
personalidades presentes, tanto artistas quanto políticos, e também vários comentários de
pessoas comuns presentes no comício.
A representação de povo nesta charge, apesar de continuar apresentando a idéia de
homogeneidade, desta vez possui o diferencial do tamanho em relação aos representantes do
governo. Como em outras charges que representam comícios, o povo é apresentado como
multidão, que não tem um fim nítido, limitado, demonstrando um grande número de pessoas.
É muito interessante a forma simples como Henfil expressa sua opinião, demonstrando o que
é óbvio para ele naquele momento, que o povo, com o movimento das diretas e
principalmente após o comício da Candelária, mostrou toda a sua força e capacidade de
mobilização.
Proponho uma comparação com a capa da IstoÉ desta edição, que mostra uma imagem
do referido comício, que também tem a intenção de demonstrar a grandiosidade do comício:
145 IstoÉ edição de 18 de abril de 1984
51
146
Nesta imagem a multidão representada não tem rostos, não tem identificação, resume-
se a um amontoado de pequenos pontos, pois a foto constitui-se a partir de uma vista aérea. A
tomada aérea é escolhida, desta vez, devido ao efeito que este tipo de ângulo fotográfico
produz, sendo que permite facilmente a interpretação de que existe um grande volume de
pessoas.
A maioria das charges e crônicas de Henfil analisadas demonstra a importância do
povo para a campanha. O caráter popular do movimento é destacado tanto nos trabalhos do
chargista, quanto nas reportagens dos periódicos IstoÉ e Folha de S. Paulo, utilizado como
principal aspecto legitimador da campanha. Por isso a representação de povo foi destacada
nos trabalhos de Henfil sobre as diretas, como uma questão que se repetia e fazia-se presente
em parte significativa dos desenhos. A visão do cartunista, contudo, diferencia-se por
146 Imagem digitalizada da revista IstoÉ, edição de 18 de abril de 1984. Acervo: Divisão de Periódicos da Biblioteca Pública do Paraná.
52
salientar a importância da iniciativa popular, enquanto as coberturas jornalísticas destacavam
o papel dos líderes políticos envolvidos na organização dos comícios.
Analisando a lógica da negociação percebe-se que esta passou e mostrar-se como uma
importante alternativa ao estabelecimento de eleições diretas, ainda no ano de 1984. Esta
alternativa representou séria divisão dentro do movimento, porque já se pensava inclusive em
outra emenda, a ser apresentada no Congresso.147 De um lado, havia os conservadores do
regime, que tinham o intuito de adiar a discussão das eleições diretas, para continuar
controlando o processo de abertura democrática. De outro estava parte da oposição, disposta a
negociar este adiamento para garantir participação no processo de sucessão por via indireta.
Uma emenda alternativa, que foi uma iniciativa do ministro Leitão Abreu, propunha eleições
presidenciais diretas somente para o ano de 1988 ou 1990 e eleições para prefeitos das
capitais para o ano de 1986; assim os políticos da base governista poderiam ter uma
justificativa para votar contra o imediatismo da Emenda Dante de Oliveira.148 E não apenas os
político da base governista, como também os da oposição que haviam aceitado negociar com
o governo.
Havia uma ambigüidade de posições dentro de alguns partidos, sobretudo no PMDB,
pois existiam dois grupos de políticos; um deles não abria mão do estabelecimento das diretas
o quanto antes, e outro, prevendo a derrota da emenda das diretas já, preferia estar à frente de
uma negociação antes de estar em uma posição de derrotados e tendo que negociar de
qualquer forma.149 Os integrantes da oposição moderada tinham a intenção, no período
próximo ao da votação da emenda, que ocorreu no dia 25 de abril de 1984, de não aumentar a
distância entre a oposição e o governo. Um exemplo desta postura é o afastamento da
organização dos comícios por parte dos governadores, principalmente Brizola (PDT) e
Montoro (PMDB), que preferiram ser espectadores nos últimos comícios programados para a
campanha.150
Entender as contradições de pensamentos e ações, dentro do PMDB, necessitaria de
uma análise precisa de toda a sua trajetória, sobretudo durante o regime militar. Um
manifesto, publicado logo após a sanção presidencial da reformulação partidária de dezembro
de 1979, demonstra que o papel que este partido pretendia assumir a partir daquele momento,
estava profundamente atrelado a um projeto de mobilização popular. Basta analisarmos um
pequeno trecho deste manifesto para entendermos estas pretensões:
147 Id. Ib., p. 61.148 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. Cit. p. 62.149 Id. Ib., p. 62.150 Id. Ib., p. 64.
53
“...o PMDB congregará todas as correntes verdadeiramente populares e democráticas (...) ganhará novos quadros que, até hoje, permanecem afastados da política partidária por não identificá-la como veículo adequado aos movimentos de base. (...) as forças dominantes (...) exigem que as formas limitadas do pluralismo político tolerado se desenvolvam dentro dos estreitos, porém variáveis, limites impostos pelos governantes para que a maioria não se torne militante e mobilizada. (...) terá (o partido) como tarefa fazer uma oposição confiável ao povo, não aos detentores do poder.”151
Como se pode perceber, o partido ao ressurgir das sombras do regime autoritário tentava
legitimar-se enquanto partido popular, exercendo, no entanto, o velho conhecido, populismo.
O aumento das diferenças de discursos e ações, entre os atores do movimento das
diretas, deixava em evidência as possibilidades de total esvaziamento dos propósitos da
campanha. Uma parte deste grupo, que reunia grande e diversificada parcela da sociedade,
pretendia a eleição direta de qualquer forma e não aceitava nenhuma espécie de negociação.
Este grupo era representado principalmente pelos partidos e entidades de esquerda. Outra
parte da oposição, como já foi citado, eram os moderados, que preferiam a via da negociação.
Estes dois grupos, no momento mais crítico do movimento, distanciaram-se do objetivo
comum. Os moderados abrindo mão do objetivo maior e aceitando, antes da votação da
Emenda Dante de Oliveira, a derrota da mesma. E os partidos de esquerda perdendo o
controle do foco da campanha, deixando com que grupos radicais utilizassem a mobilização
para outras reivindicações, como a proposta de greve geral, lançada pela Central Única de
trabalhadores (CUT) para o dia 25 de abril, gerando críticas fora e dentro do movimento.
A indefinição marcou a atuação de vários personagens importantes neste momento
crítico, de decisões e de mudanças. Esta indefinição vinha desde o comportamento do
presidente Figueiredo, que não manifestou posição favorável ou contra nem em relação à
Emenda Dante, tampouco sobre a alternativa apresentada pelo próprio governo. Entre as
preocupações dos presidenciáveis Paulo Maluf e Mário Andreazza, estavam incluídas as
possibilidades de vitória da candidatura da Convenção pedessista e também medidas que
impedissem uma votação favorável às eleições diretas, pois estes já estavam convencidos de
que o candidato lançado, somente chegaria à presidência via Colégio Eleitoral.152
151 Manifesto dos fundadores do PMDB à Nação apud Folha de S. Paulo de 20 de dezembro de 1979 - disponível em <http://bd.folha.uol.com.br/bd_acervoonline.htm>152 RODRIGUES, Alberto Tosi. Op. Cit. p. 63.
54
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A adesão universal ao movimento das diretas não foi apenas uma falácia utilizada por
alguns meios de comunicação para legitimar o movimento. Não temos a pretensão de estimar
números próximos à realidade, uma vez que os números apresentados à época são claramente
contraditórios. A exatidão numérica não altera a relevância histórica do movimento como o de
maior participação popular, principalmente devido à amplitude do mesmo em nível nacional.
Há registros de comícios organizados em todas as regiões do país, tendo ocorrido pelo menos
um em cada capital.
Analisar os trabalhos de Henfil, sobre a mobilização popular por eleições diretas no
Brasil, é analisá-lo sob a ótica da esquerda brasileira, principalmente aquela parcela
influenciada pelo socialismo utópico. Por isso é preciso entender esta ótica, como aquela em
que o modo de fazer política está centrado no povo, entendido como massa trabalhadora e/ou
explorada, a qual deveria representar o poder. O autor das críticas aqui analisadas esteve
durante toda a sua carreira, de artista/intelectual militante, tentando demonstrar para os seus
pares que as pessoas não poderiam ser sempre conduzidas por líderes políticos, em vez disso
necessitavam adquirir a autonomia necessária para o auto governo.
Ao analisar o caráter da sociedade brasileira, Marilena Chauí afirma que esta não
possui uma prática de representação política e que as esquerdas agem de forma muito
vanguardista, numa perspectiva pedagógica, onde o povo é tratado como incapaz.153 Um dos
grandes problemas das vanguardas de esquerda, organizados como partidos políticos é
julgarem o que consideram muitas vezes um atraso de consciência e agirem de forma
“esclarecida” em relação ao povo.154 A intenção de Henfil, ao produzir uma crítica recheada
de humor e, principalmente, de linguagem acessível, é atingir qualquer pessoa sem distinção
de nível de entendimento. Não significa que ele conseguiu atingir um público de menor
escolaridade, pois este também é um público de menor renda. O trabalho do cartunista, como
de qualquer artista que sobrevive de seu trabalho, esteve atrelado ao mercado editorial,
mesmo nos momentos em que trabalhou na imprensa alternativa.
Como não temos condições de analisar a recepção dos trabalhos de Henfil,
entendemos seus trabalhos a partir da hipótese de que grande parte de seu público leitor era de
classe média. Quanto às pretensões gerais do autor, temos a hipótese de que aspirava revirar
153 CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência – aspectos da cultura popular no Brasil. 2ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 55154 CHAUÍ, Marilena. Op. cit., pp. 76-85
55
os preconceitos sociais, e ainda quebrar paradigmas presentes na formação política e social de
grande parte da sociedade brasileira. Em relação ao período analisado, referente à campanha
das diretas, o cartunista pretende claramente provar a força e capacidade de mobilização do
povo brasileiro. Este aspecto contradiz a formação cultural e política de grande parte da
população brasileira, a qual dissemina a importância do feitio pacífico do povo, confundindo-
o com passividade. O chargista criticava constantemente não apenas a postura desrespeitosa
do governo em relação à população menos favorecida, pois grande parte desta passava por
muitas dificuldades econômicas, como também reprovava sutilmente algumas lideranças
políticas, por agirem de um modo paternalista em relação aos pobres.
É interessante observar, nas charges de Henfil, a ausência de qualquer líder
carismático conduzindo o povo. O conceito de povo aparece na maioria das charges e cartuns
que tratam da campanha, não apenas como forma de representação gráfica, como também em
linguagem escrita. Nas crônicas de Henfil este conceito também aparece, e o ressurgimento
deste nos meios de comunicação acontece devido à própria campanha, que permitiu a re-
significação desta categoria. Napolitano analisa este aspecto afirmando que
“a presença concreta de milhares de pessoas na praça, aliada ao tipo de representação simbólica disseminada pelos organizadores e pela imprensa, exigia uma releitura do ‘povo’ enquanto categoria política.(...) Se o povo (...) batia na porta do poder para exigir mudanças políticas, ele também servia de base para representações conservadoras, que procuravam se legitimar junto a este mesmo poder para efetivar negociações palacianas e elitistas.”155
Por isso percebe-se a presença do conceito de povo, enquanto representação da Nação
brasileira, em todas as reportagens dos periódicos analisados e também nos discursos dos
comícios.
A maioria das charges e crônicas de Henfil analisadas demonstra a importância do povo
para a campanha. O caráter popular do movimento é destacado tanto nos trabalhos do chargista,
quanto nas reportagens dos periódicos IstoÉ e Folha de S. Paulo, utilizado como principal
aspecto legitimador da campanha. Por isso a representação de povo foi destacada nos trabalhos
de Henfil sobre as diretas, como uma questão que se repetia e fazia-se presente em parte
significativa dos desenhos. A visão do cartunista, contudo, diferencia-se por salientar a
importância da iniciativa popular, enquanto as coberturas jornalísticas destacavam o papel dos
líderes políticos envolvidos na organização dos comícios.
155NAPOLITANO, Marcos. Representações políticas no movimento Diretas-Já In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 15, n. 29 p. 207-219.
56
Lembrando das críticas de Alberto Tosi Rodrigues em relação ao caráter de
negociação da campanha por eleições diretas, caráter este delineado pela participação de
alguns políticos ditos moderados, podemos dividir a campanha em dois movimentos definidos
por características de ação diferenciadas. Uma destas frentes de atuação, a da negociação, é
sutilmente criticada nos desenhos de Henfil aqui analisados. A outra frente, caracterizada pela
mobilização popular, é visivelmente valorizada nos trabalhos do chargista. A manifestação de
rua simbolizava, no momento estudado, o direito ao protesto, readquirido durante a abertura
política. E a reivindicação do direito de ter uma representação política indicada pelos próprios
representados, sintetizava toda a significação do conceito de democracia naquele momento.
As críticas de Henfil em relação às negociações em torno das eleições diretas,
consideradas um desrespeito com população brasileira que estava na rua lutando por um
direito legítimo, são muito importantes para entendermos as contradições internas da
campanha. A teoria da negociação, elaborada pelo cientista político citado acima, foi
elaborada a partir de estudos e pesquisas em diferentes fontes de informação. A opinião
expressa nas charges, cartuns e crônicas de Henfil, já relevam certo conflito existente entre os
próprios líderes do movimento das diretas. A popularidade e festividade dos comícios,
destacados pelos meios de comunicação, legitimaram e garantiram a continuidade da
campanha Diretas-Já. O consenso era valorizado, pois nenhum político da oposição ousaria
manifestar-se contra as eleições diretas. A postura populista de alguns líderes envolvidos com
o movimento é claramente criticada por Henfil, que pretendeu através de seus desenhos
lembrar quem era o grande protagonista da campanha Diretas-Já: o POVO.
57
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