Post on 11-Feb-2019
m dos fascínios da biografia dos grandes homens é es-
sa aparente fatalidade que parece conduzi-los inexo-
ravelmente ao papel que virão a representar, o qual,
uma vez cumprido, adquire essa qualidade, sempre a
posteriori, de aparente e natural imutabilidade. ≈≈≈José Olympio Pereira Filho nasceu em Batatais, interior de São Paulo, a 10 de
dezembro de 1902, filho de pai baiano e mãe paulista, em família de limitados
recursos e numerosa prole. Esse que viria a se tornar o maior editor literário
brasileiro, e não só literário – na já longa e acidentada tradição em que se des-
tacaram um Paula Brito, um B. L. Garnier, um Francisco Alves, um Monteiro
Lobato, um Henrique Bertaso –, veio ao mundo no ano que é um divisor
de águas na consciência do Brasil sobre si próprio. Semanas antes do seu nas-
cimento chegava às mãos dos leitores Os sertões, causando um abalo na visão
que as elites da nossa belle époque faziam da própria pátria, sem dúvida um dos
marcos inegáveis do surgimento do Brasil moderno. José Olympio faz parte,
portanto, de uma geração fundamental na arte e no pensamento brasileiros,
a geração de Gilberto Freyre, de Murilo Mendes, de Rachel de Queiroz, de
Cecília Meireles, de Carlos Drummond de Andrade, de Pedro Nava, de José
Lins do Rego, todos nomes que, pelos caminhos do livro, virão a ter relação
com ele e a Casa que fundou.
Aos 15 anos, o filho do guarda-livros de Batatais decide ir para a capital
e trabalhar. Sendo afilhado do historiador e político Altino Arantes, uma das
lideranças de sua cidade natal e então governador de São Paulo – presiden-
te, como se dizia então –, seu pai resolve escrever ao compadre ilustre, ten-
tando algum trabalho para o filho na capital do estado. A 7 de junho de 1918
chega-lhe a seguinte resposta:
p r i m e i r o s a n o s.
§ 1
J o s é O l y m p i o : O e d i t o r e s u a C a s a.6 5
no alto, à d ire ita:
Ex-libris de Alfredo Pujol, encontrado
em todos os livros, notavelmente
encadernados, de sua biblioteca, uma
das mais importantes do Brasil no início
do século xx. Pujol foi membro da
Academia Brasileira de Letras e
publicou, em 1917, uma importante
biografia de Machado de Assis.
Sr. José Olympio Pereira:
O Senhor Presidente manda comunicar a V. Sa que está arranjado o emprego
para seu filho na Livraria Garraux.
O ordenado será pequeno em começo, porém o lugar é de futuro.
É bom mandar o menino com a maior urgência possível.
Do admirador atento,
Afro Rezende
Com esse bilhete, assinado pelo chefe da Casa Militar do presidente de São
Paulo, sela-se o destino de José Olympio no mundo dos livros. Começa numa
das mais antigas e tradicionais livrarias de São Paulo – fundada em 1860 por
Anatole-Louis Garraux, casa onde os poetas românticos que passaram pela Aca-
demia de Direito iam comprar as novidades da literatura –, com um salário de
30 mil-réis mensais. Sua primeira moradia na capital será no porão do Palácio
dos Campos Elísios, onde décadas depois voltará como convidado ilustre.
Em primeiro de março de 1924 passa da condição de empregado, cada vez
mais necessário à existência da casa, à de sócio, conforme carta manuscrita do
sócio-proprietário Fausto Bressane (ver pág. 70):
Com a retirada em plena harmonia de meu sócio e amigo Charles Hildebrand, as-
sumi todas as responsabilidades da firma extinta Hildebrand-Bressane, continuando
assim a Casa Garraux com o mesmo ramo de comércio.
Atendendo aos bons serviços que o Sr. como empregado da Casa tem prestado e es-
perando a continuação com o melhor esforço, comunico a deliberação de conceder-lhe,
além do ordenado atual de 450$000, o interesse de três e meio por cento sobre os lucros
líquidos do balanço.
Como é uso comercial, dada por qualquer modo a sua retirada da Casa, o interesse
correspondente ao tempo decorrido depois do balanço será pago na base do anterior, po-
dendo preferir a Casa pagá-lo por ocasião do próximo balanço, de conformidade com ele.
Em 1929 recebia já um conto de salário mensal, e em 1931, quando deixa a
Garraux para fundar a livraria e editora que levará seu nome, três contos. Um
ano antes surgiria a oportunidade que propiciaria a José Olympio a capitaliza-
ção necessária para seguir o próprio caminho. A 20 de maio daquele ano fale-
cia Alfredo Pujol, escritor, acadêmico e bibliófilo, proprietário da que talvez fos-
se a melhor biblioteca particular da época. Posta à venda pelos herdeiros, intuiu
o jovem de Batatais a possibilidade de um grande, ainda que arriscado, negó-
cio. Curiosamente, foi com a venda dessa biblioteca de livros antigos e
raros – para a aquisição da qual precisou levantar a vultosa quantia de 80 con-
tos de réis –, que José Olympio deu início à mais extraordinária, profícua e du-
J o s é O l y m p i o : O e d i t o r e s u a C a s a.6 7P r i m e i r o s A n o s.6 6
Bilhete, datado de 7 de junho de 1918, da parte de
Altino Arantes, padrinho de J.O., avisando a
seu compadre, José Olympio, pai, ter arranjado
um emprego para o seu filho na Livraria
Garraux. Assinado pelo coronel Afro Rezende,
chefe da Casa Militar de Altino Arantes, este é
o marco inicial da relação que durará mais de
seis décadas entre J.O. e o mundo dos livros.
abaixo:
Altino Arantes, padrinho de J.O. Eleito
presidente do estado de São Paulo para
o período 1916-1920, foi depois deputado federal
por São Paulo (1921-1930), revolucionário em
1932, constituinte em 1946 e novamente
deputado federal (1946-1951). Dele a editora
publicou, em 1958, Passos do meu caminho,
prefaciado por Antônio Gontijo de Carvalho. Anatole-Louis Garraux, livreiro francês
(1833-1904), proprietário da casa do mesmo
nome, em bico-de-pena. Garraux chegou ao
Rio de Janeiro por volta de 1850 e foi trabalhar
como caixeiro na Livraria Garnier, onde
ficou 10 anos. Depois transferiu-se para
São Paulo, e lá fundou a firma A. L. Garraux,
que funcionava como livraria e importadora
de artigos de luxo franceses. Retornando
à França, dedicou-se à publicação de uma
Bibliographie brésilienne (1898), que a
José Olympio viria a editar em 1963 com prefácio
de Francisco de Assis Barbosa.
radoura aventura na história editorial do Brasil. Apoiado por amigos de recur-
sos que fizera em São Paulo, entre eles José Carlos de Macedo Soares, o rapaz
de 29 anos consegue levar adiante o negócio, para o qual imprime e distribui
um convite (ver pág. 70) com os dizeres:
José Olympio Pereira Filho convida V. Exa. a visitar a preciosa biblioteca que per-
tenceu ao Dr. Alfredo Pujol, à rua Pirapitinguy no 26, das 7 1/2 às 12, das 14 às 18 e
das 20 às 23 horas. São Paulo, 10 de junho de 1931.
Quase seis meses depois, em 29 de novembro de 1931, funda a Livraria
José Olympio Editora. Desse modo começava a cumprir a profecia feita por
Antônio de Alcântara Machado ao então empregado da Casa Garraux, quan-
do lhe augurou, numa dedicatória, o papel de futuro editor dos novos da lite-
ratura brasileira.
Em 1932, ano da inauguração, a José Olympio publicou apenas Conhece-te
pela psicanálise, tradução de José Almeida Camargo para How to Psycho-Analyse
Yourself, de Joseph Ralph.
Para se ter uma idéia da atividade do editor estreante, em 1933 foram seis
títulos, entre eles A ronda dos séculos, contos de Gustavo Barroso, e Os párias,
crônicas de Humberto de Campos, que tiveram duas edições no ano. Em 1934,
ano da transferência de J.O. para o Rio de Janeiro, o número de publicações
subiu para 32, entre eles cinco livros de Humberto de Campos, O Estado mo-
derno (liberalismo-fascismo-integralismo), de Miguel Reale, obra inaugural da
coleção Problemas Políticos Contemporâneos, cujo 2o volume, no mesmo ano,
foi O sofrimento universal, do líder integralista Plínio Salgado. Ainda em 1934
a José Olympio publica a 4a edição de Os corumbas, de Amando Fontes, e a 2a
edição do Machado de Assis, de Alfredo Pujol.
Em 1935 são lançados 58 livros, entre eles a 1a edição do romance Boquei-
rão, de José Américo de Almeida; a 1a edição do Tratado de Direito Internacio-
nal, de Pontes de Miranda, em dois volumes; Salgueiro, romance de Lúcio
Cardoso; No limiar da idade nova, de Alceu Amoroso Lima, volume 11 da Co-
leção Problemas Políticos Contemporâneos; a 1a edição de Minha vida, de Isa-
dora Duncan, traduzida por Gastão Cruls, e a 1a edição, ilustrada, de A vida
inquieta de Raul Pompéia, de Elói Pontes.
Em 1936 a José Olympio edita 65 livros, sete a mais que no ano anterior:
esse é o ano da estréia do cronista Rubem Braga, com O conde e o passarinho;
da 1a edição de Educação para a democracia (Introdução à administração educacio-
nal), de Anísio S. Teixeira; de Alma do Oriente, contos e lendas orientais por
Malba Tahan; de Mana Maria, o romance inacabado, póstumo, de Antônio
de Alcântara Machado, que ganhou capa de Santa Rosa; e de três livros de
Jorge Amado – 1a edição de Mar Morto, 2a de Suor e 3a de Cacau –, todos com
capas e ilustrações de Santa Rosa. Ainda em 1936 Lúcio Cardoso publica A luz
no subsolo, e Graciliano Ramos a 1a edição de Angústia.
Em 1937 a Casa edita 54 livros, o mesmo ocorrendo no ano seguinte. Em
1939 o número sobe para 80. Em 1940, 72 livros. De 1941 a 1950 ganham a
logomarca da José Olympio 935 títulos, e na década seguinte 960 obras são
publicadas – uma média de quase 100 livros novos por ano.
J o s é O l y m p i o : O e d i t o r e s u a C a s a.6 9
O advogado, político e escritor carioca
Alfredo Pujol (1865-1930), com amigos, na
sua famosa biblioteca em São Paulo.
Sentados: Júlio de Mesquita, homen não
identificado, Olavo Bilac e Pujol; de pé:
Martins Fontes, três não identificados,
Pinheiro Júnior, Simões Pinto, Nestor
Pestana, Amadeu Amaral, Roberto Moreira,
Júlio de Mesquita Filho e outro não
identificado.
Conhece-te pela psicanálise, publicado em
1932, o primeiro título da editora. Tradução de
How to Psycho-Analyse Yourself, lançado
por J. Ralph, em 1921, na Califórnia.
à d ire ita:
Interior da Livraria José Olympio Editora, na
Rua do Ouvidor, 110, inaugurada em 3 de julho
de 1934: José Condé, Murilo Mendes,
Adalgisa Nery, Amando Fontes e Jayme Adour
da Câmara, no início da década de 1940.
no s entido horário:
Convite de J.O. para visitação
da biblioteca de Alfredo Pujol, cuja
venda possibilitou a criação da
Livraria José Olympio Editora.
Carta de promoção de J.O. a
gerente-geral da Casa Garraux,
com participação nos lucros.
Grupo de funcionários da Casa
Garraux. J.O. é o terceiro da direita
para a esquerda, na última fila.
Interior da livraria na Rua da Quitanda, 19,
São Paulo, 1931. Em História de minha vida,
do educador Fernando de Azevedo, publicado
pela José Olympio em 1971, lê-se: “A Livraria
Garraux, que tinha então como gerente
José Olympio, era a que mais visitava, não
só pelo acervo, e sempre renovado, de
seus estoques, sobretudo franceses, como também
pela oportunidade feliz que me oferecia de
rever e ouvir amigos como José Olympio.
Tanto isso é verdade que, quando fundou, na
Rua da Quitanda, com a biblioteca Alfredo
Pujol, a livraria que tomou seu nome, eu
me mudei também da Livraria Garraux
para essa nova casa de livros.
José Olympio, que sabia, como poucos,
fazer amigos, continuou a ter junto dele e dos
seus livros todos que iam vê-lo e consultá-lo
sobre as novidades literárias. Instalada a nova
livraria de sua propriedade e direção, para ela
se deslocara toda a clientela que antes afluía
à Casa Garraux. Lembro-me de que, junto a essa
nova livraria, havia um bar, famoso por suas
empadas de galinha e camarão.”
à d ire ita:
José Carlos de Macedo Soares (1883-1968), o
principal financiador da compra da biblioteca de
Alfredo Pujol, foi ministro das Relações Exteriores
de 1934 a 1937 e de 1955 a 1958, ministro da Justiça
em 1937 e interventor federal em São Paulo de 1945
a 1947. Dele a Casa publicou, em 1938,
Discursos (Rumos da diplomacia brasileira)
e, no ano seguinte, Fronteiras do Brasil no
regime colonial, com ilustrações e mapas de
J. Wasth Rodrigues. Este e Percy Lau ilustraram,
do mesmo autor, a bela edição de Santo
Antônio de Lisboa, militar do Brasil (1942).
J o s é O l y m p i o : O e d i t o r e s u a C a s a.7 1
P r i m e i r o s A n o s.7 2
da e squerda para a d ire ita:
Cavaquinho e saxofone, de Antônio de
Alcântara Machado, crônicas reunidas em
volume por Sérgio Milliet e publicadas em 1940.
Alcântara Machado profetizou, em uma
dedicatória de Laranja da China, o papel
que J.O., então apenas o “Zé da Garraux”,
viria a desempenhar na divulgação da
literatura brasileira.
Memórias – Primeira parte (1886-1900), de
Humberto de Campos, 7a edição em 1935.
Um dos autores mais populares do Brasil de
então. No prefácio ele diz: “Escrevo a história da
minha vida não porque se trate de mim; mas
porque ela constitui uma lição de coragem aos
tímidos, de audácia aos pobres, de esperança aos
desenganados, e, dessa maneira, um roteiro útil à
mocidade que a manuseie. (...) Aqui fica, deste
modo, o primeiro volume das minhas
Memórias, que são as de um homem que fez
sozinho a sua marcha desde as vizinhanças do
berço, e lutou, sozinho, contra todos os obstáculos
da sua própria condição e contra todas as
tentações que o assaltaram pelo caminho. Não
cheguei muito alto, de modo a ombrear com os
escritores notáveis do meu país, porque vim de
muito baixo. Mas percorri maior distância do
que eles, porque vim de mais longe.”
Grupo de intelectuais ligados à Casa,
na década de 1930: José Lins do Rego,
Octavio Tarquinio de Sousa, Paulo Prado,
José Américo de Almeida e Gilberto Freyre.
Dos cinco, Paulo Prado foi o único que
não teve obra editada pela J.O. em seus
primeiros anos de funcionamento.
abaixo:
J.O. (de mãos nos bolsos), seu irmão
Daniel e, ao centro, um amigo não
identificado. São Paulo, década de 1930.
história da José Olympio confunde-se, em grande
parte, com a h i stória da l iteratura bras i le ira a
partir dos anos 1930, o exato momento em que o
Modernismo, passada a sua fase mais combativa e
contestatória, atinge a maturidade. ≈≈≈≈≈≈≈≈≈No caso do romance nordestino, e mais largamente de toda a ficção regiona-
lista brasileira do século xx, esse vínculo torna-se ainda mais forte. Se, a par-
tir de A bagaceira, de José Américo de Almeida, em 1928, dando início ao vi-
goroso movimento, as estréias quase contemporâneas de Rachel de Queiroz,
José Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos aconteceram em outras
editoras, ou em edições de autor, todos esses nomes centrais transferiram-se
pouco depois para a Casa. Por outro lado, quando, alguns anos mais tarde,
inicia-se um outro e distinto ciclo regionalista, com o seu apogeu em Guima-
rães Rosa e em nomes como os de José Cândido de Carvalho e Mário Palmé-
rio, Bernardo Élis ou Ariano Suassuna, todos entrarão também para as filei-
ras da José Olympio.
Se a ficção do Nordeste e de outras áreas de predominância rural seguiu
essa vertente regionalista, por mais vaga que seja a designação e múltiplas as
suas manifestações, outra ficção, de matriz mais urbana ou introspectiva, se
afirmou em áreas mais industrializadas do país; é o caso de autores cariocas
ou residentes no Rio de Janeiro, como Lúcio Cardoso, Octávio de Faria e
Adalgisa Nery, ou, em outras linhas ou gerações, Marques Rebelo, Gastão
Cruls, Orígenes Lessa e Antônio Callado, todos editados pela Casa. Da fic-
ção paulista entraram para o catálogo da José Olympio desde nomes do Mo-
dernismo de primeira hora, como Oswald de Andrade, o agitador do movi-
mento, Mário de Andrade, seu líder inconteste, ou Antônio de Alcântara
a l i t e r at u r a m o d e r n an o b r a s i l.
§ 2
J o s é O l y m p i o : O e d i t o r e s u a C a s a.7 7
no alto, à d ire ita:
Detalhe da capa de Santa Rosa para o
penúltimo romance de José Lins do Rego,
Eurídice (1947), dedicado a J.O.