01 Crônicas de Viagem

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Texto livre sobre a vicissitudes das viagens em ônibus, que muito sobram para serem contadas no papel.

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Crônicas de Viagem

"Mesmo que tenha alto poder aquisitivo ande,  ao menos uma vez, de ônibus."

Em demasia ouvi essa frase e sempre guardei-a com cuidado, no intuito de compreendê-

la. Mas foi-me necessário um tempo. Tempo para que compreendesse que, em quase

toda viagem, há sempre uma novela da vida. 

Primeiro foi essa senhora que sequer conhecia a cidade de destino. Perguntava-

me constantemente por onde estava. Quando finalmente alcançáramos a cidade, a

senhora, dessa gente humilde, ofereceu-me casa, comida e estadia onde morava.

Obviamente agradeci-a e disse-lhe que a qualquer hora aparecia. Mas, claro, é este o fim

desta história. Da outra vez foi um casal com sua brigas ininterruptas. Juro que me senti

frente a uma novela das oito, no clímax do enredo. Lembro-me de um bêbado que se

sentou ao meu lado e, com seu bafo expressamente alcoólico, contava-me as peripécias

de sua vida. Algumas sem sentido. Acredito, pois, que era esse tal de teor alcoólico.

Seguindo a rotina de passageira observadora, tornei-me babá por curtas horas. A mãe

que, viajando sozinha com a criança de colo, necessitava de um colo amigo. E lá eu

estava. E o senhor que, do embarque ao desembarque, contou toda história de sua vida,

ao celular (e, de quebra, aos passageiros). Aliás, constantemente pergunto-me se apenas

eu observo as histórias, as atitudes  excêntricas e como é a vida de cada um. Mas...

Voltemos ao assunto. Lembro-me da menina que chorava, da criança que só ficava em

pé, do vendedor inovador que, a fim de comprovar as maravilhas que seu aparelho

exercia, caiu um desses tombos terríveis. Pois digo que sempre há um quebra-molas pra

causar obstáculos na vida das pessoas. Lembrem-se disso.

Encontrei-me também com o rapaz que acreditava que o ônibus fosse ponto de

encontro. Sentava-se ao lado de uma moça solitária e quando o resultado lhe era

insatisfatório, ia perturbar o ouvido de outra. Mas não foi o único: havia um senhor de

uns 60 anos que, compreendendo a desilusão de sua  aparência e idade, apelava para o

dinheiro (talvez ele seja um desses que estivesse experimentando, ao menos uma vez na

vida,  o prazer em andar de ônibus. Quem sabe?). Como não poderia faltar, deparei-me

com as mulheres falantes, com seus assuntos fúteis e inacabáveis (às vezes, a estratégia

era dormir); com crianças  irritantes, sempre querendo saber se já haviam chegado, ou

com os choros incessantes dos mais novos e, claro, com os usuários vips de banheiro.

Talvez  seja a mera curiosidade em saber urinar em movimento. Vai saber. Ah! Não

posso deixar de mencionar a ilustre passageira de semana passada: falando ao telefone

com o "coração", dizia estar com saudades, e  que desejava ser roubada novamente para

a vida do rapaz (ou moça... Coração  não determina gênero), com despedida de “beijos

em sua boca” e tudo mais. Juro que não ri. Posteriormente, relatou a problemática das

celas femininas. Nessa hora a tensão subiu e acho até que guardei o celular, por

impulso.

Muitas histórias presenciei, fiz parte; muitas vidas por mim se passaram, mas

não há como lembrar de todas elas. Na memória fica o riso, a dúvida, o espanto, o

medo. Mais que isso, a sensação de reconhecer que o ser humano é incrível em suas

peculiaridades e mesmo os meros fatos, podem e tornam-se histórias pra contar. Pois

assim lhes digo, em minha "antologia onibulesca", que a vida, se observada, torna-se

um espetáculo bem mais interessante que as novelas televisivas. Claro, sem um próximo

capítulo, mas cheio de novas histórias.

Jéssica França de Oliveira, 09 de janeiro de 2014